Voltou à pensão sorridente e satisfeito com a solução que havia encontrado. A salva era perfeita para a ocasião. Graças a ela não tinha de ir bater à porta de Amélia, mas ainda assim daria uma indicação, por sinal muito elegante, de que estava inquieto e pensava na sua amada. E teria notícias dela.
Era de mestre!
Sentindo-se já tranquilizado e com a paz de espírito recuperada, Luís fechou-se no quarto da pensão e pôs-se enfim a estudar para o exercício de Geografia que estava marcado para o dia seguinte. Embora tivesse a matéria adiantada pelo trabalho dos dias anteriores, faltava-lhe ainda fixar os nomes dos rios de todo o país, matéria que havia decorado na primária mas já tinha esquecido. Leu a lista e nomeou-os de rajada, entoando uma ladainha à maneira da tabuada, só que, em vez de quatro-vezes--cinco-vinte, dizia Alviela-Sabor-Lima-Mondego...
Toc-toc-toc.
A batida interrompeu-o quando ia chegar ao Sado.
"Quem é?"
"Sou eu, menino."
Luís rolou os olhos, exasperado. Era a dona da pensão. Ergueu-se da cama e, com gestos contrariados, foi abrir a porta.
"O que é, dona Hortense?"
"Aiche, Jesus!", exclamou ela, notando a expressão contrafeita de Luís. "O menino hoje está de gângaras!"
"É que estou a estudar, dona Hortense. Tenho muito que fazer." Suspirou, como se fosse dono de infinita paciência. "Diga lá, o que se passa?"
"Assucede que está um mocinho lá em baixo para si."
"Ah, sim!", lembrou-se, o mau humor varrido de um momento para o outro. "É para eu pagar.
Diga-lhe que já vou."
Calçou os sapatos, pegou numa moeda de meio tostão que tinha sobre a mesa-de-cabeceira e desceu as escadas saltando os degraus de dois em dois. Viu o rapaz da mercearia à espera diante da porta de entrada, mas constatou que ele trazia o ramo enlaçado de salva nas mãos, o que Luís estranhou.
"Então?", questionou, ia ainda nos últimos degraus. "O que se passa? Não fez a entrega?"
"Eu fiz, senhor deitor."
Luís imobilizou-se diante do rapaz, as mãos à ilharga, uma expressão interrogativa no olhar.
"Então o que está a planta aí a fazer?"
"Não estava lá ninguém, senhor deitor."
"Como assim?"
"Eu botei-me à porta e bati, mas ninguém atendeu."
"É porque saíram, se calhar foram ao médico." Fez sinal com a cabeça na direcção do ramo.
"Você devia ter deixado a planta com uma vizinha, sempre poupava o trabalho de lá voltar."
"Eu tentei, senhor deitor. Fui bater à porta da vizinha e pedi-lhe que fizesse o favor de entregar a planta à menina Amélia. Mas ela disse que já não era ali."
"O que não era ali?"
"A casa da menina Amélia."
"Você está a gozar comigo? Claro que é ali!"
"Não foi o que me disse a vizinha, senhor deitor. Ela disse que a casa foi fechada e as senhoras mudaram-se."
"Para onde?"
"Não sei, senhor deitor. Mas foram para outra terra."
Luís arregalou os olhos, estupefacto.
"O quê?"
"A menina Amélia já não mora em Bragança."
XIV
As janelas da fachada da casa apresentavam-se efectivamente corridas e lá de dentro não vinham quaisquer sinais de vida. Tremendo de ansiedade e a respiração oprimida pela aflição, Luís foi bater à porta, primeiro com delicadeza, depois com desorientada insistência. Mas, tal como o rapaz da mercearia havia avisado, ninguém abriu.
A mente agitava-se-lhe num turbilhão enquanto ele aguardava no intervalo das batidas. Vivia um sentimento de irrealidade, pensava que aquilo não lhe estava a acontecer, não podia estar a acontecer, haveria decerto uma qualquer explicação. Mas o facto é que a casa estava mesmo fechada e Amélia não se encontrava ali.
"Talvez tenham ido ao médico", murmurou para si mesmo. "Ou então foram passear, sei lá."
Deu alguns passos para o lado e foi bater à porta da vizinha. Tinha de haver uma razão lógica para aquilo, só podia haver um engano, de certeza que o rapaz da mercearia percebera tudo mal.
Uma mulher larga de aspecto desgrenhado, com um avental azul e uma vassoura na mão, espreitou por entre as cortinas da janela do rés-do-chão com ar interrogativo.
"Desculpe, sou um amigo da sua vizinha, a menina Amélia", apresentou-se, tirando o chapéu.
"Vim aqui saber dela mas a casa parece fechada. Faz o obséquio de me dizer se ela se ausentou?"
A mulher abriu a janela.
"A dona Beatriz e a menina Amélia já aqui não moram."
"Não moram como? Abandonaram a casa assim sem mais nem menos?"
"Foi uma espantação!", exclamou a vizinha. "Até nós aqui em casa estamos fartinhos de comentar o assucedido. Ant'onte, no sábado, a dona Beatriz apareceu-nos aqui à pela uma da tarde a despedir-se. Vinha toda afergulhada e disse que tinha fechado a casa e qu'ia morar p'ra outra terra."
"Qual terra?"
"Ah, isso ela não m'explicou."
"Não lhe perguntou?"
"Aperguntar, até qu'aperguntei. Mas ela não disse nada e eu botei-me no meu lugar. Não m'ia pôr a alanzoar."
"Então como é que eu posso chegar à fala com a menina Amélia?"
"Ah, isso eu cá não sei."
"Não há ninguém que saiba para onde elas foram?"
"Eu não aconheço."
"Alguém de família, alguém de quem fossem amigos, sei lá..."
"Não aconheço ninguém."
Luís mordeu o lábio. Estava a ser difícil arrancar alguma informação que lhe permitisse localizar a namorada.
"A dona Beatriz não lhe explicou por que razão teve de se mudar assim tão... tão à pressa?"
"Disse que eram assuntos de família."
"Que assuntos?"
"Ah, isso eu não aperguntei. São lá coisas entre elas, não é?" Inclinou a cabeça para fora da janela, em tom conspirador. "Mas lá que achámos estranho, lá isso achámos. Ainda onte à noute eu disse ao meu André: ó menino, há gato em tod'esta história!" Olhou em redor, como se temesse ser escutada, e baixou a voz. "Assuntos de família, é?" Fez um esgar sabido. "A certa!" Voltou a olhar em redor, para se certificar de que não havia ouvidos indiscretos nas redondezas. "Eu cá não sou belfurinheira, toda a vizinhança sabe que nunca fui de alcarrotar nem dessas coisas, Deus me livre!
Mas ninguém me tira qu'esta história dos assuntos de família é tudo boldreguices! Boldreguices, digo-lhe eu! Cá p'ra mim, sabe qual é a verdadeira razão p'ra se terem posto a andar? Sabe qual é?
Sabe?"
"Não."
Abriu muito os olhos negros, como se fosse revelar um grande segredo.
"Conques."
"O quê?"
"É tudo questão de conques, home!" Remexeu o indicador e o polegar. "Cunfres. Carcanhol.
Dinheiro."
"Que dinheiro?", espantou-se ele.
"Chiu", soprou ela, fazendo com as mãos sinal para falar mais baixo. Voltou mais uma vez a cabeça para a direita e para a esquerda, de modo a assegurar-se de que ninguém ouvira, e fixou Luís com uma expressão conspiradora. "Deve haver umas falcatruas pelo meio, é o que é!"
"Está a falar de quê?"
"Da loja, home! Da loja! A dona Beatriz não tem uma loja?"
"Ah, pois tem!", lembrou-se Luís. "A Casa Rodrigues!"
"Pois é. Cá p'ra mim, é tudo um problema de conques, está a ver?"
"Como sabe isso?"
A vizinha estreitou os olhos e fez um ar de entendida, como se soubesse mais do que dizia.
"Eu cá m'entendo!"
Luís olhou para ela, avaliando-a. Era claramente uma linguaruda virada para a maledicência, só mesmo uma alcarroteira é que garante não ser belfurinheira. Metade do que dissera, se não mesmo tudo, não passava com toda a probabilidade de produto da sua fértil imaginação intriguista. O facto, concluiu, é que a vizinha não deveria verdadeiramente saber por que razão dona Beatriz tinha vendido a casa. Se queria mesmo obter essa informação, teria de procurar noutro lado.