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Ao vê-lo assim, naquela embrulhada diante dela, depois de tantas e tão intensas trocas de olhares pelas janelas do liceu, a rapariga logo suspeitou que não houvera ali acidente nenhum, antes um estratagema para meter conversa, e não conseguiu ocultar o leve esboço de um sorriso, pormenor pequeno, mas significativo, que não escapou a Luís.

"Não me assusto com facilidade", observou ela por fim, contornando-o e fazendo tenção de prosseguir caminho, ciente de que uma rapariga de bem tinha de se dar ao respeito.

Luís recuperou os cadernos e apressou-se a acompanhá-la.

"Sabe, quando vejo uma moça bonita, assim como você, fico, sei lá, fico nervoso, não é?

E foi isso que... que me atrapalhou."

A rapariga olhou-o, divertida com a audácia do piropo.

"Não, você não é desastrado. É atrevido."

"Receio que esteja a confundir atrevimento com sinceridade." Estendeu a mão. "Sou o Luís e sou sincero."

Ela riu-se, ignorando a mão que lhe era oferecida.

"É atrevido e tem muita conversa, já vi."

"Não me diga que não me vai dizer o seu nome..."

"Para que quer o meu nome, pode-se saber?"

"Ora, para sermos amigos, claro."

"Ai quer ser meu amigo, ora é?"

Luís parou, dobrou o joelho e fez uma vénia.

"Seria uma honra."

"E para que preciso eu de um amigo?"

"Todas as damas têm o seu cavaleiro."

Encantada com aqueles modos, a rapariga estendeu-lhe enfim a mão e rendeu-se.

"Chamo-me Amélia."

Cumprimentaram-se e ele mirou-a com um sorriso.

"Amélia dos olhos garços?"

Amélia voltou as costas, embaraçada e deliciada com a audácia do moço, e apressou o passo com um doce e fresco menear das ancas, como se balouçasse o corpo ao ritmo de um sensual bolero. Correu assim para as amigas, que tudo observavam com invejosa curiosidade, soltando risinhos excitados e sussurrando com agitação. Uma vez com elas, Amélia voltou a cabeça, observou Luís parado na escadaria a admirá-la, os olhos inflamados por tanta graciosidade, e acenou timidamente com o braço.

"Adeus!"

E corou.

O resto do dia foi vivido por Luís com um misto de ansiedade e exaltação. Mal comeu ao almoço, a mente sempre absorvida a reconstituir o que sucedera na escadaria do liceu. Quando as aulas terminaram à tarde, seguiu direito para a pensão onde estava hospedado em Bragança e fechou-se no quarto.

Ah, Amélia! Que lindo nome! Tudo nela lhe parecia perfeito. Uma estranha e saborosa euforia apossou-se dele, desinquietado com a temeridade com que se aproximara da rapariga mais bonita do liceu, alvoraçado com a reacção que dela tivera. A luz do Sol sorria-lhe da janela e convidava-o a

abraçar o dia dourado. Reviu vezes sem conta as breves palavras que trocaram nos degraus e escalpelizou ao pormenor as expressões desenhadas naquele rosto fino. Procurou ler nas entrelinhas do que não fora dito, buscou emoções por detrás dos sorrisos que Amélia lhe exibira, encontrou conforto no adeus que ela lhe lançara na despedida. Ficara na escadaria a vê-la juntar-se às amigas; desejara ardentemente que ela se virasse, que ela não se mostrasse indiferente àquele encontro, que ela o olhasse uma derradeira vez.

E Amélia olhara.

Toc-toc-toc.

"Quem é?"

"Sou eu, menino Luís. A dona Hortense. Estamos todos à sua espera para a janta."

Luís rolou os olhos, impaciente com a inoportuna interrupção, a deleitosa cadeia de pensamentos e fantasias brutalmente quebrada pela voz esganiçada.

"Rai's t'a parta o diabo da mulher!", murmurou, contrariado, desencostando-se da almofada langorosa. "Que maçada, só pensa na engorda..."

Saltou a custo da cama e entreabriu sem entusiasmo a porta. Parada diante dele como um arbusto plantado no corredor estava a dona da pensão, uma senhora redonda de meia-idade, de cabelo encaracolado e faces rosadas, o aspecto bonacheirão de transmontana bem nutrida.

"Atão, menino?"

"Desculpe, dona Hortense, mas não tenho fome."

"O menino não vem à janta?", admirou-se ela, limpando as mãos ao avental sujo.

"Sabe o que é? Tenho muito que estudar."

"Arre diabo! Então esteve a abelhinha da Graciete a esmerar-se para fazer um belo cozidinho, daqueles cheios de chicha

valente, como o menino gosta, e agora não quer comer? Logo o menino, que sempre foi tão lambiteiro!"

"Pois é, mas preciso de estudar."

A dona da pensão inclinou a cabeça e tentou espreitar pela frincha da porta entreaberta.

"Mas que estudos são esses, valha-me Deus, que o botam no quarto e não o deixam comer?"

O rapaz encostou a porta o mais que podia, de modo a manter a frincha num fio.

"São os trabalhos que os professores mandam para casa."

Desconfiada, dona Hortense fitou-lhe os olhos com atenção e, de repente, abrindo o rosto com ar de quem acabou de descobrir a resposta para o enigma, colou-lhe a palma da mão sapuda à testa.

"Não me diga que está febroso..."

"Não, não, eu estou bem."

Constatando que a temperatura na testa era normal, a dona da pensão endireitou-se e indicou com a cabeça o andar inferior, onde se situava a sala de jantar.

"O menino é muito fisquinho, tem de comer."

"Eu sei, dona Hortense. Mas primeiro preciso de alimentar a alma."

"Ora, cenórias! Primeiro enche-se o bandulho e só depois é que vem a alma. Sem paparoca boa, a cabeça não pensa. Além disso, a sua tia mandou-me cebá-lo bem e não quero cá reclamações."

"Fique descansada."

A dona da pensão deu meia volta e desceu as escadas, os braços gordos agarrados ao corrimão.

"Quando lhe der a galgueira, já sabe: vai à cozinha, hem?"

Vendo-a desaparecer nos degraus inferiores, Luís fechou a porta do quarto e suspirou.

"Que estopada!"

Mas logo se recompôs. O quarto era animado pelo alegre chalrar dos periquitos que esvoaçavam para cá e para lá dentro de uma espaçosa gaiola, as irrequietas penas verdes e amarelas contempladas pelo olhar vidrado dos peixes que deslizavam em silêncio no pequeno aquário do canto. Habitualmente era com os seus animais que se distraía, mas desta vez havia um atractivo diferente. A fantasia esperava-o na cama, a noite seria longa e os sonhos ardentes.

Ah, Amélia!

II

O apetite só lhe veio ao pequeno-almoço do dia seguinte e, mesmo assim, com uma moderação que deixou dona Hortense rubra de tão escandalizada.

"Concho!", exclamou, levando as mãos gordas ao rosto corado. "aquase que me dá um fanico de o ver assim a modos que estrelicado! Um moço tão peleiroso como o menino precisa de gafar melhor, ouviu? Senão falta-lhe a genica e nunca chegará a deitor!"

"O dona Hortense, não vale a pena exagerar. Bebi o leite e comi o papo-seco, não foi?"

"É pouco."

Luís arrastou a cadeira para trás e ergueu-se.

"Chega-me perfeitamente", disse. "Agora tenho de ir para o liceu, já se fazem horas."

"O quê?", admirou-se ela, seguindo-o com os olhos contrariados. "Mas ainda falta uma hora para as aulas começarem. Para quê essa pressa toda, valha-me Deus?"

"Tenho muito que fazer."

"Ai tem, tem. E a primeira coisa que tem a fazer é comer. Lembre-se que o menino não gafou nada ontem à noite. Devia ao menos levar uma merendinha."

"Não é preciso."

Dona Hortense virou-se e dirigiu-se à cozinha.

"Desculpe, mas tem de ser", insistiu. "Onde é que já se viu ir assim para a escola? Vou ali pedir à Graciete que lhe bote na cestinha as sobras do cozido e um chouricinho de mel."

"Não quero."

Mas a dona da pensão já nem o ouvia e desapareceu para além da porta.