Saturado com a insistência, Luís levantou-se da mesa.
"Se me dá licença, preciso de ir estudar."
"Outra vez?", admirou-se ela. "Mas o menino não faz outra coisa que não seja estudar! É sempre a estudar, a estudar, a estudar... Credo, até me faz espécie!"
"O que quer? Ando numa época de muitos pontos..."
"O menino é muito zagucho, não há dúvida, essa cabeça até esmilha de tão esperta que é! Mas oiça o que eu lhe digo: só consegue estudar bem se comer melhor! Ouviu?" Ergueu o dedo, toda sentenciosa. "E como o lambiteiro do padre Álvaro costuma dizer sempre que cá vem encher a pança: mentis sanas em... uh... corpus sanus... ou lá o que é!"
Se não se sentisse tão abatido, Luís ter-se-ia rido.
"Isso", limitou-se a dizer, dirigindo-se às escadas. "Agora vou tratar da mentis."
Dona Hortense levantou-se também da mesa e foi atrás dele.
"Mas como é possível o menino andar tão penisqueiro, valha-me Deus? Por que razão não come nada?" Gesticulou. "Desde que aqui está que sempre teve tanta sapeira, sempre foi um lambaças de primeira! Quando há feijoadinha boa, oh, põe-se logo à husma! E agora... agora deu-lhe para isto?"
Abanou a cabeça e bateu com a palma da mão na testa, em desespero. "Bem m'eu finto do que está a acontecer! Até parece que é por finca-ratunha!"
"Não é por finca-ratunha nenhuma", insistiu ele, sem parar de subir os degraus. "Não tenho fome e há muito trabalho pela frente. É só isso."
Dona Hortense ficou em baixo a vê-lo desaparecer no topo das escadas.
"Rai's t'a parta o diabo do catraio!", praguejou quando o ouviu fechar a porta do quarto. "Ora querem lá ver isto?" Abanou a cabeça e regressou contrariada para a mesa. "Chiça! Até mete ranço!"
A sexta-feira chegou e Luís passou pela Casa Rodrigues logo que saiu a caminho das aulas, mas, considerando que nem oito da manhã ainda eram, foi sem surpresa que verificou que a loja se encontrava encerrada. Um papelinho pregado na porta indicava que o estabelecimento só abriria às dez da manhã, o que aliás acontecia com todo o comércio de Bragança.
Desejou ardentemente que houvesse um furo a partir das dez horas, mas, como se fosse de propósito para o contrariar, nenhum professor faltou. Parecia uma conspiração. Acompanhou as aulas com mal disfarçada impaciência. Não se cansava de consultar o relógio. Espreitou tanto os ponteiros que até o habitualmente distraído e extravagante professor de Latim notou.
"Ex abrupto", exclamou o professor de modo teatral, os olhos fixos em Luís, "ele olha para o relógio!"
"Perdão?", atrapalhou-se o aluno, regressando à sala e percebendo-se interpelado.
"Ah, voltou entra muros? Magnífico! Está finalmente hic et nunc! É que vejo-o tão preocupado com as horas... Serei eu que o maço, senhor Afonso?"
"Não, não", apressou-se Luís a esclarecer. "Sou eu que... que tenho um compromisso."
"In continenti?
"Não, não é imediatamente. É mais logo."
"Ah! Post meridiem."
"Isso."
"Esteja ad libitum. Se precisar de sair, nihil obstat. Mas, nota bene, enquanto estiver aqui na aula quero-o concentrado quantum satis no que aqui se passa. É essa a vexata quaestio. Entendeu?"
"Sim, senhor."
O professor emitiu um longo suspiro pedante e girou o dedo no ar, a boca curvada à maneira de Mussolini, imaginando-se talvez um senador a discursar no fórum de Roma.
"Dura lex sed lex!"
As aulas terminaram ao meio-dia e, em vez de ir direito para a pensão, onde, como era habitual àquela hora, o esperava o almoço, Luís previsivelmente seguiu para a Casa Rodrigues. Caminhou tão depressa que quase corria e em poucos minutos se pôs na loja.
Logo que o viu entrar de rompante, a senhora do balcão apontou para o grande relógio de pêndulo que se encontrava encostado à parede.
"Só à tarde. A patroa está agora a almoçar."
Os olhos de Luís acenderam-se, esperançados.
"Ah sim?", exclamou, arfando por causa da caminhada apressada. "Ela já cá está?"
"Já pois. Passou por aqui ainda há bocadinho."
"E onde foi almoçar?"
"Onde haveria de ser? A casa, pois então!"
Saiu da loja sem agradecer e sem se despedir, tão concentrado estava na sua busca. Correu pela rua com a mão a segurar o chapéu na cabeça, incapaz de reprimir a ansiedade; tinha de saber o que se passava e enquanto não soubesse não descansaria.
Parou diante da casa de Amélia e espreitou as janelas do primeiro andar. As cortinas tinham sido abertas para deixar entrar o sol; não havia dúvidas, estava alguém em casa. Com o coração aos pulos, não sabia se pelo esforço da corrida ou se pelo anseio por ter chegado o momento da verdade, bateu à porta e aguardou. Apercebeu-se de que arquejava e fez um esforço para recuperar o fôlego e controlar a respiração.
A porta abriu-se e viu dona Beatriz de avental e uma colher de pau na mão. Era evidente que estava a cozinhar.
"Boa tarde, minha senhora", cumprimentou, tirando o chapéu. "Desculpe incomodá-la. A Amélia está?"
A mulher permaneceu um instante a observá-lo, como se ponderasse o que haveria de dizer.
"Quem é o senhor?"
"Eu?", admirou-se o rapaz, uma expressão de perplexidade a atravessar-lhe o rosto. "Eu sou o Luís, o amigo da Amélia. Não se lembra? Vim cá noutro dia falar consigo."
"Quem o senhor é já eu sei muito bem", atalhou ela, a voz seca. "A minha pergunta é: quem é o senhor... para me vir aqui a casa à hora do almoço?"
Quase sem querer, os olhos de Luís pousaram na colher de pau.
"Ai, desculpe! Eu não... não..."
"Porventura veio aqui a esta hora para se fazer convidado?"
"Eu não, claro que não!"
"Cheirou-lhe a comida e ei-lo!"
"Desculpe!", empertigou-se o rapaz. "Não é disso que se trata. Apenas quero saber da Amelinha."
"Ai sim?", exclamou ela num tom irónico. "Pois o senhor tinha o dia inteiro para saber da bijou, mas, vejam só, escolheu justamente a hora do almoço para aqui vir!"
Luís engoliu em seco. Que mulher difícil!
"Oiça, minha senhora", disse no tom mais razoável de que foi capaz. "Estou aqui unicamente para saber da Amélia. Prefere que eu venha mais daqui a um bocado?"
"Claro que prefiro!", vociferou ela, como se tal pergunta não fizesse sentido tão óbvia era a resposta. "Isto são horas de aparecer em casa de alguém?"
"Então eu passo mais logo", decidiu, ignorando a pergunta provocatória de dona Beatriz. "Seis da tarde. Pode ser?"
"Olhe que eu hoje tenho muito trabalho pela frente..."
"Mas eu só quero saber onde está a Amelinha."
Dona Beatriz ponderou por momentos a situação.
"Pois bem, venha às três", concedeu por fim.
"Mas eu tenho aulas à tarde..."
"Às três", sentenciou numa pose majestosa e em tom magnânimo, como um juiz indulgente com o criminoso. "Eu conceder-lhe-ei cinco minutinhos."
XVI
Ainda hesitou entre ir almoçar à pensão e ficar-se por ali. Já nem era a questão das aulas à tarde, que dava por perdidas naquele dia; tratava-se de dona Hortense. Sabia que a proprietária da pensão tinha a refeição à sua espera e sentir-se-ia desconsiderada se ele nem ao menos a informasse de que não ia lá comer, mas, por outro lado, percebia que todo o cuidado era pouco com dona Beatriz. E se ela aproveitasse a pausa do almoço para voltar a abalar? Como resolveria o mistério do desaparecimento de Amélia? Poderia abandonar a entrada da casa?