A desconfiança acabou por prevalecer e Luís optou por dar um salto à mercearia para comprar uma regueifa e um queijo e regressar logo a seguir. Sentou-se a depenicar a regueifa debaixo de uma árvore plantada do outro lado da rua enquanto vigiava a porta de casa de Amélia, não fosse a mãe escapar-se-lhe por entre os dedos.
Às três em ponto voltou a atravessar a rua e foi de novo bater à porta de casa. Desta vez quem atendeu foi Francisco, que o encarou com a habitual expressão carrancuda.
"A senhora está à sua espera", grunhiu, deixando-o entrar.
Luís seguiu o rapaz pelo corredor até à sala e deu com dona Beatriz sentada à mesa do almoço, rodeada de papéis que manejava com destreza. Ao aperceber-se da sua presença, a dona da casa fez com a mão sinal de que se aproximasse e com a cabeça indicou a Francisco que os deixasse a sós.
Quando Luís se plantou diante dela, pousou os papéis e o lápis que tinha em mãos, tirou os óculos redondos e fitou-o longamente, uma expressão altiva a incendiar-lhe os olhos.
"Então?", disse. "Já almoçou?"
"Já sim."
"O que comeu?"
Luís sentiu-se surpreendido com a pergunta. Para que diabo quereria ela saber o que almoçara?
"Uma regueifa com queijo."
"Mais nada?"
"Sim, foi só isso."
A mulher sorriu e voltou a encavalitar os óculos sobre o nariz, desviando a atenção para os papéis pousados à sua frente.
"Bem me queria parecer!", murmurou num ranger de dentes. "Bem me queria parecer!"
Remexeu os papéis, simulando que procurava qualquer coisa. "Quer é vir aqui comer por conta, é o que é", ruminou, como se falasse sozinha mas sabendo perfeitamente que ele a escutava. "Pensam que nasci ontem, mas topo-os à distância!"
Ao escutar o inesperado solilóquio, Luís sentiu-se a ferver de irritação. Aquela mulher tinha o condão de distorcer tudo
o que dizia ou fazia; não percebia se era feitio ou provocação, mas o hábito começava a mexer-lhe com os nervos.
"Perdão?", interpelou-a, uma ponta de desafio no tom. "Como disse?"
"São cá coisas minhas", retorquiu ela, sem levantar os olhos dos papéis. Arrumou uns recibos ao canto da mesa. "Vamos mas é ao que interessa. O senhor veio cá porque quer saber da bijou, não é verdade?"
"É, sim senhora."
Voltou a fitá-lo, sempre emproada.
"Pois a bijou já cá não mora. Não vale a pena preocupar-se mais com ela, está em boas mãos."
"Pois, mas eu gostaria de saber onde se encontra a Amélia."
"O que lhe interessa isso? A bijou foi-se embora e não voltará mais. Ponto final. Portanto, esqueça-a."
Luís respirou fundo e considerou a melhor maneira de expor o que tinha a dizer.
"Minha senhora, veja se compreende isto", disse, esfor-çando-se por permanecer calmo. "Faz amanhã uma semana que me despedi da Amelinha no liceu e ela disse até segunda. Como vê, tudo normal. Só que na segunda-feira não apareceu. Nem água vai, nem água vem, não disse nada. Fui depois informado de que a casa estava fechada e a Amélia já não iria mais ao liceu porque tinha ido viver para outro lado. Ora ela não me tinha dado qualquer indicação de que ia mudar de liceu, de casa, de terra ou do que quer que fosse. Para além disso, não me deixou nenhuma mensagem, nenhum recado, nada." Encolheu os ombros e abriu os braços, num gesto de pasmo que lhe reforçava o sentimento de impotência. "Como deve calcular, acho tudo isto um pouco estranho e gostaria muito de saber o que se passa."
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"O que se passa é que ela foi viver para outro sítio. É isso o que se passa."
"Mas posso ao menos falar com ela?"
"Não, não pode."
"Porquê?"
"Porque ela não está cá."
"Então diga-me onde está e eu vou lá falar com ela."
Dona Beatriz soltou uma gargalhada.
"Isso queria você!" Deixou o riso morrer e apontou-lhe o dedo, quase acusadora. "Não percebe que, se ela se foi embora, foi justamente por sua causa?"
Luís abriu a boca, atónito.
"Por minha causa?"
"Claro! Para que lhe ia eu dizer onde está a bijou? Para você ir lá fazer-lhe a cabeça e recomeçar tudo de novo? Era o que mais faltava! Eu quero que a minha bijou..."
"Espere!", cortou ele, elevando pela primeira vez o tom de voz. "Está a dizer-me que ela se foi embora por minha causa?"
Dona Beatriz soergueu a sobrancelha, as linhas do rosto assumindo o aspecto de quem não admite ser questionado.
"Pois claro que sim!", confirmou. "Ainda não tinha percebido? A minha bijou não é fruta para a sua boca."
"Que quer dizer com isso?"
"Quero dizer que a bijou não se vai casar com um pelintra como você! Quero dizer que..."
"Eu não sou nenhum pelintra!"
"Mas também não é homem para a minha filha! Onde é que já se viu a bijou estar destinada a um... um... um que vai passar a vida a tratar de porcos e burros e pulgas?"
A incredulidade estampou-se-lhe no rosto.
"Está a referir-se ao meu desejo de seguir veterinária?"
"Estou a referir-me a tudo! Estou a referir-me aos porcos que você quer tratar, estou a referir-me às suas terrinhas lá para trás do Sol posto, estou a referir-me aos seus modos e à sua irritante mania de aparecer em casa das pessoas à hora do almoço como um rafeiro que pedincha comida!" A voz ganhou-lhe força; dona Beatriz galvanizava-se. "A minha filha há-de ter o melhor! Ouviu? O
melhor! E um... um coiso... um veterinário ou lá o que é, um provinciano sem maneiras, um larpão que só pensa no almoço, isso, meu caro senhor, não é o melhor!"
Luís abanou a cabeça e sorriu sem vontade. Os argumentos pareciam-lhe tão absurdos que nem sabia por onde começar para os desmontar.
"Ai não? Então o que é o melhor?"
"O melhor é aquilo a que a bijou está destinada."
"E a que está ela destinada? A um médico? A um advogado? A quem?"
"A quem lhe proporcionar um futuro em segurança." Fez um gesto na direcção do cesto de malhas que tinha pousado junto à lareira. "Ela sabe corte e costura, graças a Deus, mas precisa de um homem que lhe assegure o futuro. Neste mundo, a mulher é o que o homem for. Quanto mais prestigiada for a profissão do marido, mais promissor será o futuro da bijou."
O rapaz encolheu os ombros, resignado.
"Muito bem, não há problema", disse. "Vou inscrever-me em Medicina, não seja lá por isso..."
Dona Beatriz pegou no lápis e começou a brincar com ele entre os dedos.
"é tarde de mais", sentenciou.
"Não, não é. Vou terminar agora o liceu e, em vez de me inscrever em Veterinária, inscrevo-me em Medicina. É muito
simples até, não há dificuldade nenhuma. Aliás, se formos a ver bem, a veterinária é um ramo da medicina, pelo que a mudança não custa nada..."
"O senhor inscrever-se-á no que quiser e muito bem entender, mas a bijou não lhe está destinada."
"Mas porquê? Como pode a senhora dizer isso?"
A mulher cravou os olhos nele, fria e calculista.
"Porque a bijou já casou."
Convencido de que tinha ouvido mal, Luís sacudiu a cabeça.
"Como?"
"Foi no domingo passado, no Porto."
O rapaz ficou um longo instante a fitá-la, incapaz de processar a informação, tal a enormidade que lhe era atirada à cara.
"Que está a senhora a dizer?"