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"Estou a dizer-lhe que a bijou não será sua porque já não é sua. No sábado passado fomos ao Porto e ela casou com um oficial. Foi uma cerimónia muito bonita logo na manhã de domingo e ela tem agora vida montada lá para aqueles lados. O oficial herdou terras, é um homem muito abonado e fará dela uma rapariga feliz."

Um baque quase lhe parou o coração, agora que começava a digerir a notícia.

"A Amélia casou?"

Dona Beatriz continuava a falar, aparentemente alheia ao efeito que as suas palavras estavam a produzir no visitante.

"Claro que é uma solução vantajosa para todos. Primeiro para ela, é evidente. Tornou-se proprietária de duas belas quintas, ficou muito bem na vida. Mas também este casamento foi conveniente para a família, não o nego. O nosso património ficou agora alargado."

Olhou para cima e benzeu-se. "O meu Raul, se fosse vivo, ficaria muito contente. Ele também

era do exército, sabe? Tinha o sonho de casar bem as filhas e eu... eu consegui!"

"Mas... mas a Amélia casou por vontade própria?"

A pergunta trouxe-a à terra.

"O que quer dizer com isso de vontade própria?", perguntou, quase empertigada. "Onde é que uma criança com aquela idade tem vontade própria? Onde é que uma menina acabada de sair da escola é capaz de discernir o que é bom e o que é mau para ela? O óleo de fígado de bacalhau será porventura saboroso? Alguém o toma por prazer? E, no entanto, haverá quem duvide dos seus benefícios para a saúde?"

Luís sentiu a raiva apossar-se dele. A face enrubesceu-se--lhe, uma sombra cobriu-lhe os olhos e as têmporas começaram a latejar. Com que direito decidia aquela mulher a sua vida e a vida da filha?

"A senhora está a dizer-me que a Amélia casou à força?"

"A Amélia é uma rapariga que foi ensinada a ser obediente", disse dona Beatriz quase a soletrar as palavras, como se as pesasse com grande cuidado. "Como menina educada que é, está perfeitamente consciente de que o óleo de fígado de bacalhau sabe pavorosamente, mas faz muito bem à saúde! Será uma excelente esposa, boa mãe e uma grande dona de casa." Suspirou. "Claro que a Amélia ainda não vê bem as coisas desta maneira, não é verdade? Agora é jovem e tem muitas ilusões, acha que a vida é um conto de fadas... enfim! Felizmente cá estou eu para zelar pela sua felicidade e para..."

De cabeça já perdida e sem conseguir conter-se mais, Luís agarrou-a pelos colarinhos e puxou-a com força para ele, tão alto que ela ficou a espernear no ar.

"Grande puta!", berrou-lhe diante do nariz, os perdigotos a saltarem para a cara da senhora.

"Cabra de merda!"

"Chico!"

Sacudiu-a de um lado para o outro, como um saco de batatas, e, apesar de estar cego de raiva, lutou contra a vontade quase irresistível de a esmurrar.

"Bicha-cadela! Calatre ordinário! Desanco-te toda, juco de trampa! Como te atreveste, grandessíssimo calhau? Como..."

"Chiiiiiiiiico!"

"... te atreveste a meter-te na nossa vida? Quem és tu para pôr e dispor de mim e da Amélia?

Quem és tu..."

Uma força poderosa sugou-o para trás, obrigando-o a largar dona Beatriz. Sentindo a sala girar em seu redor, vislumbrou por uma fracção de segundo o rosto animalesco de Francisco antes do brutal impacto no estômago que o estendeu no chão, o corpo dobrado sobre si mesmo, uma dor cavada no estômago a roubar-lhe a respiração e luzinhas a cintilarem-lhe nos olhos, como pirilampos a esvoaçarem na noite.

Perdeu toda a noção do tempo, mergulhado na escuridão da dor que lhe moía o corpo. Teve apenas a vaga impressão de que o arrastavam, mas quase não se importou. Estava já para lá de tudo isso. Largaram-no sobre uma superfície dura e fria, cuja textura demorou a entender. Sentiu as costas molhadas e gemeu.

A mente ainda entorpecida, fez um esforço para raciocinar e percebeu enfim que se encontrava pousado no chão, abandonado, o corpo meio mergulhado em água gelada. Depois pensou no que se tinha passado e espantou-se por não se lembrar de quase nada. Apenas que Francisco o havia apanhado por trás e dera cabo dele. A lembrança do sucedido deixou-o atónito; era extraordinário como um rapaz de apenas doze anos tinha tamanha força.

Abriu devagar os olhos e deparou-se com o céu acinzentado da tarde, um manto de cobre recortado pelo ondular atijolado dos telhados. Não fazia ideia do sítio onde se encontrava.

Ergueu a cabeça a custo e olhou em redor. Rostos espantados observavam-no com um misto de medo e curiosidade, como se estivessem indecisos, tentando entender quem poderia ele ser. Tratar-se-ia de um bêbado? Era um maltrapilho? Seria perigoso?

Percebeu então que estava deitado na rua, para onde fora jogado como se não passasse de um saco de lixo.

Parte Dois

1934

E se um sonho

de esperança te surgir

I As bailarinas, roliças e cintilantes, saltitavam no palco de um lado para o outro, acompanhando a batida frenética da orquestra naquele espectáculo feérico de música, luz, cor e movimento; em uníssono, sem parecerem sequer ofegantes, mantendo até o sorriso reluzente à maneira do show biz, cantavam em coro, as pernas movidas em maravilhosa sincronia pelo ritmo infernal da dança.

São mulheres nuas, saxofones a gritar; São girls, são pernas De bailarinas, bem ritmadas, a marcar; São projectores que nos inundam de luz, Um mundo irreal que nos seduz.

"Fantástico!", gritou um rapaz de cabelos negros ao ouvido de Luís. "Já viste?"

Sem tirar os olhos do palco, Luís assentiu.

"Até parece uma fita americana."

"Olha-me para estes jogos de pés!", exclamou o amigo, entusiasmado. "O Fred Astaire e a Ginger Rogers não fariam melhor!"

"Ó Fernando, também não vale a pena exagerares..."

O ar vibrava, a multidão exultava e os saltos das bailarinas ressoavam no soalho do palco com batidas surdas. As palmas irrompiam amiúde pela sala e os olhos dos homens seguiam com mal disfarçada gula as formas arredondadas das bailarinas. Não eram tão altas nem tão elegantes como as das fitas americanas; porém, debaixo dos focos de luz e apertadas naqueles vestidos resplandecentes que lhes deixavam as coxas à mostra, pareciam do melhor que por aquelas paragens tinha passado.

As bailarinas enchiam a sala, mas Luís não as seguia a todas. Tinha a atenção presa numa em particular, a terceira a contar da esquerda, aquela que ostentava uma vistosa cabeleira loira platinada, à Jean Harlow. Não tinha a certeza de que fosse a mais bonita.

Vendo bem, não era de certeza; a alta do meio e a primeira da direita, a das mamas grandes, pareciam-lhe mais jeitosas, verdadeiras mulheraças, mas a sua loira chegava bem para fazer um figuraço junto dos colegas da faculdade.

"Bravo!", ululou Fernando quando o número acabou. "Bra-vooo!"

As palmas ribombavam pelo recinto em revoadas enquanto as girls abandonavam o palco.

"Já viste?", perguntou Luís, girando uma olhada pela sala. "Isto está apinhado!"

"Porque pensas que tive de comprar os bilhetes com uma semana de antecedência? Tem estado assim desde a estreia..."

Uma nova actriz pisou o palco e o público reagiu de imediato com uma monumental ovação.

"Quem gosta da Betty Boop?", perguntou ela com uma expressão maliciosa.

A sala encheu-se de gritos e assobios; pela reacção tornava-se evidente que a actriz era a sua favorita. A recém-chegada tinha cabelo negro liso, a franja cortada numa linha sobre os olhos, à condessa de Noailles, e a cara bolachuda e marota, feições distintivas mesmo à distância. Não havia no país quem não a reconhecesse, dos palcos ou dos filmes.