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"A Beatriz Costa é o máximo!", observou Fernando, esfuziante.

Luís acompanhava a ovação, batendo palmas entusiásticas.

"Sem dúvida", concordou. "Não precisa de dizer uma graça para ser engraçada."

"Acho-lhe piada ao-corte do cabelo."

"Parece a Louise Brooks, já viste?"

"Tens razão", anuiu Fernando, fazendo mentalmente a comparação. Inclinou a cabeça em direcção a Luís. "A esta é que gostavas de ferrar o dente, hem?"

"A quem? À Beatriz Costa?"

"Não, à Greta Garbo. Claro que à Beatriz Costa, meu palerma!"

Luís abanou a cabeça.

"Nem pensar. É engraçadinha, mas é mais do género bibelot. Não lhe fazia nada, a não ser pedir-lhe que me fizesse rir."

"Pois, pois. Está-se mesmo a ver..."

Derramando talento no palco, a actriz da franja interpretava as suas deixas com convicção.

"Viva o Santo António milagreiro!", exclamou. "E ele... o homem dos meus sonhos!"

Um burburinho divertido percorreu a sala. O duplo sentido daquele nome era inconfundível; todos tinham entendido o trocadilho e prepararam-se para o que aí vinha.

"Isto é propaganda barata ao Salazar", observou Luís com acidez.

"E merecida!", atalhou Fernando, ignorando o desagrado do amigo. "O Toninho é o nosso Santo António milagreiro!"

"Ora!" Fez uma expressão irónica. "Se ele fosse tão modesto quanto apregoa, de certeza que não aprovaria."

"Pois, se calhar não..."

"Não sejas parvo!", exclamou o transmontano. "Se a censura e o Ferro deixaram passar, é porque ele gosta, não te parece?"

"Sei lá. Se calhar é um excesso de zelo do António Ferro. Não te esqueças de que o Toninho não acompanha o teatro ligeiro do Parque Mayer nem se interessa por estas coisas mais mundanas. Provavelmente nem sequer sabe que a peça existe."

Luís riu-se sem vontade.

"Achas mesmo? Então esta peça chama-se Santo António e ele não havia de saber?"

"Está bem, o Toninho lê no jornal que está o Santo António no Parque Mayer. E

depois?"

"E depois?", admirou-se Luís. "Olha lá, a que Santo António pensas tu que o título se refere?"

Fernando hesitou, reflectindo na resposta à pergunta. Realmente, como acreditar que tal título não fosse entendido pelo Presidente do Ministério, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal, quando o via todas as manhãs espetado na página de espectáculos dos jornais? No mínimo faria algumas perguntas. Além do mais, toda a gente sabia que o simples enunciar do nome António nas telas do cinema ou nos palcos de teatro tinha um duplo sentido inequívoco. Como poderia Salazar ignorar tal coisa?

"Seja", concedeu. "Admitamos que ele sabe."

Luís riu-se.

"Ele sabe? Provavelmente foi ele que aprovou a ideia!"

"Ena, onde é que isso já vai!"

"Achas? Tu reparaste quando é que o Santo António estreou?"

"No mês passado."

"Mais exactamente a 27 de Maio, meu caro. A data diz-te alguma coisa?"

O rosto do amigo iluminou-se.

"A véspera dos oito anos da revolução."

"Achas que foi coincidência?"

O amigo encolheu os ombros.

"Pois sim, admitamos que se tratou de uma operação montada para assinalar o aniversário da revolução nacional. E depois? Qual é o mál?"

"Se gostares de propaganda política camuflada, nenhum. Só estou a dizer é que estas tiradas não se coadunam com o ar pretensamente austero do Salazar."

"Está na moda, Luís. Não vês o que se passa na Alemanha e na Itália? É tudo assim, à grande!"

"Pois, mas o Salazar anda para aí a apregoar virtudes diferentes. A modéstia, a humildade... essas coisas."

"O Toninho acompanha os tempos", observou Fernando. "Além do mais, ser modesto não significa ser tolo."

"Chiu", lançou uma espectadora na fila de trás, empertigada. "Deixem ouvir!"

No palco começou uma nova canção, que Betty Boop, aliás Beatriz Costa, apresentara com o título de o homem dos meus sonhos.

O que o escudo nos reforça, Sem um grito, sem um berro, O

que não tem quem o torça,

Pois tem tanta, tanta força, Que dobrou o próprio Ferro.

A sala ia desabando com a cascalhada de gargalhadas.

As luzes, a cor, os cenários, os vestidos deslumbrantes, a decoração, as melodias, os chistes, os movimentos graciosos, o coro de risos, os aplausos, o entusiasmo, a alegria, os assobios, tudo desapareceu como num truque de ilusionismo no instante em que os espectadores começaram a abandonar a sala do Avenida, mas os efeitos da emoção perduravam ainda, e não era caso para menos.

Não havia em Lisboa peça mais divertida que o Santo António, pelo que não admira que à saída, quando os espectadores jorravam já sobre o átrio da casa de espectáculos, os comentários se cruzassem como confetti em dia de festa. "A Beatriz Costa estava o máximo!", opinava um. "Viste o número em que ela fez de Branca Pitosga?", perguntava uma rapariga. "Giríssimo!" Uma terceira voz defendeu que "a Irene Izidro também estava muito bem", enquanto alguém à direita dizia que o melhor "foi o Vasco Santana a fazer de Zé Ralaço". Só a recordação desse número suscitou sorrisos, o que levou alguém a defender não haver dúvidas de que "o Vasco encontra-se em forma", ideia que mereceu a aprovação geraclass="underline" "Grande artista!"

Ainda no átrio, Luís e Fernando separaram-se da multidão que saía do edifício para desembocar no passeio da Avenida da Liberdade e esgueiraram-se por uma porta lateral reservada aos artistas, mergulhando assim no labirinto de um novo e fascinante mundo: os bastidores do Teatro Avenida.

A harmonia deu então lugar a um caos atordoante. Para decepção dos dois visitantes, tudo o que se ocultava na parte

de trás da cena era confuso, desarranjado, feio até; davam-se gritos, ouviam-se ordens, os rostos desfaziam-se em suor, a maquilhagem desbotava, as raparigas moviam-se sem propósito aparente, os estafetas corriam de um lado para o outro, os homens davam voltas ou conversavam, as portas abriam-se e fechavam-se com estrondo.

"Onde é?", perguntou Fernando, que seguia o amigo.

"Ali à frente."

Cruzaram-se no caminho com a actriz da franja à condessa de Noailles e Luís teve vontade de lhe falar. No entanto, conteve-se; pensou que toda a gente teria decerto o mesmo desejo quando com ela se cruzava, dava a impressão de que a actriz lhe era familiar, mas sabia que isso não passava de ilusão. Além disso, ficou desconcertado com a expressão que ela trazia no rosto; já não era a cara divertida que apenas alguns instantes antes vira brilhar em palco, mas um semblante inesperadamente opaco, os olhos cansados e o corpo molenga, era quase uma da manhã e tinha acabado o segundo espectáculo da noite.

"Viste?", lançou Fernando num sopro, olhando para trás, mas não querendo que a actriz o escutasse. "Era a Beatriz Costa!"

"Eu sei", devolveu Luís num tom blasé, como se cruzar-se com as grandes estrelas fosse nele hábito antigo.

"Caramba! É baixinha!"

"E roliça."

Fernando observou o rabo que desaparecia ao fundo do corredor e riu-se nervosamente.

"A ti não te escapa nada."

O barulho recrudesceu e, ao dobrar da esquina, deram com uma sala cheia de bailarinas e uma nuvem cinzenta a pairar-lhes por cima. Fernando travou o amigo e ficou a observalas, os olhos arregalados de tão escandalizados.