"Belinha."
"... depois a Teresa... e hoje convidaste-me aqui ao Parque Mayer para conhecer a tua nova namorada."
Fez-se um curto silêncio. Fernando aguardava que o amigo apresentasse uma justificação para aquilo a que assistira
instantes antes. Mas Luís pareceu não perceber a dúvida e encolheu interrogadoramente os ombros.
"E depois?"
"E depois?" Fernando voltou a abanar a cabeça, incrédulo. "E depois?" Apontou de novo para o quarto de banho das senhoras. "E depois apareceu mais esta."
"Sim, e então? E a minha nova namorada."
"Olha lá, quantas namoradas tens tu?"
"Bem... uma."
Fernando pousou os ombros na mesinha redonda e incli-nou-se na direcção do amigo.
"Ai é? E a girl loiraça que eu vi há bocado aos pulos no Santo António e que te espetou um grande chocho nos camarins? Não me vais dizer que era tua prima..."
"É essa a minha namorada."
Fernando respirou fundo, sem compreender.
"Mau! Qual é afinal a tua nova namorada? A girl loira ou... ou esta que apareceu agora aqui?"
Foi a vez de Luís soltar uma gargalhada.
"Esta é a loira!", exclamou.
"Qual loira? Esta tem o cabelo castanho, que eu bem vi!"
"E a mesma, palerma. Tu achas que os cabelos da girl que viste há pouco são mesmo loiros? Aquilo era uma peruca, meu grande camelo! A gaja que entrou agora aqui é a girl, mas sem a peruca! Percebeste? É a Guida."
O amigo abriu a boca, entendendo tudo.
"Ah! Esta é a loira!"
"Claro."
"Desculpa, não tinha percebido." Riu-se e recostou-se na cadeira, já descontraído.
"Caramba, fico mais aliviado!"
"Pensavas que eu andava com duas girls ao mesmo tempo?"
"Pois... vejo-te há bocado com uma loira e agora com uma morena, o que querias que eu pensasse?" Trincou uns tremoços. "Além do mais, se queres que te diga fico mais descansado por descobrir que a loira afinal não é loira."
"Porquê?"
"Ora, porquê? Quando a apontaste no palco e disseste que ela era a tua nova namorada, pensei: mas onde é que este gajo arranja tipas deste calibre? Porra, o cabrão anda com a Mae West! Até fiquei complexado, caraças!"
O café enchera-se de homens acabados de sair dos espectáculos do Parque Mayer e fervilhava de animação. O ambiente era barulhento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos clientes, a maior parte de pé, com um cigarro e um copo na mão, à espera de um lugar numa mesa.
Os dois amigos ainda se estavam a rir no seu canto quando Margarida reapareceu vinda do quarto de banho e atravessou a multidão. Sempre desinibida, voltou a sentar-se ao colo de Luís; parecia uma menina traquina, daquelas que nunca param quietas.
"Aqui o Fernando pensou que eu tinha duas namoradas", anunciou-lhe Luís, provocando o amigo.
"Quais duas namoradas?", espantou-se a rapariga, interrompendo as carícias para lhe lançar um olhar desconfiado. "Há outra?"
"Pois há." Pôs-lhe o dedo na ponta do nariz. "És tu."
"Mas quem é a outra?"
"És tu, já disse." Apontou para Fernando. "Ele viu-te loira há bocado, viu-te morena agora e achou que eram moças diferentes. Até perguntou se podia ficar com a loira..."
"Não perguntei nada", corrigiu o amigo.
Margarida olhou para Fernando e simulou um ar ofendido.
"Oh! Não gostas de mim?"
"Bem...", atrapalhou-se ele, desconcertado com a pergunta. "Quer dizer..."
A rapariga endireitou a cabeça e fitou o namorado.
"Ou és aqui como o Luís, que esconde um segredo?"
"Qual segredo? Não digas disparates..."
"Ai escondes, escondes", cantarolou ela. Virou de novo a cara para Fernando.
"Conheces o segredo dele?"
"Eu não."
"Chama-se Amélia."
"Cala-te!", cortou Luís com abrupta rispidez. "Cala-te!"
Fez-se um silêncio embaraçado entre os três. Mas a animação prosseguia em redor, ignorando a súbita tensão naquela mesa do canto, e isso de algum modo contribuiu para desanuviar o ambiente.
"Amélia!", cantarolou Margarida, como se o estivesse a testar. "Amélia!"
"Oh, vá lá", disse Luís, já mais macio, corrigindo a aspereza com que instantes antes a mandara calar. "Não venhas outra vez com essa conversa."
Vendo o amigo inopinadamente embaraçado, e passada que parecia a sua súbita irritação, Fernando deixou-se arrastar pela curiosidade e não deixou cair o assunto.
"Amélia?", perguntou, dirigindo-se a Margarida. "Quem é essa Amélia?"
"Isso queria eu saber", devolveu ela. "Nunca ouviste falar nela?"
"Nunca."
"Deve ser uma antiga namorada."
"Bem, eu conheci outras namoradas dele, mas confesso que jamais ouvi falar nessa."
Margarida apertou a bochecha do namorado.
"Aqui o Luizinho não me conta nada." Fez beicinho. "É mau!" Inclinou-se para trás, na direcção de Fernando, e sussurrou muito alto: "Essa Amélia é segredo!"
"Não há segredo nenhum", repetiu Luís com ar de enfado.
"Então porque não me contas?"
"Porque não há nada para contar." Fez um gesto na direcção dos outros dois. "Calem-se lá com isso."
Mas Fernando não fazia tenções de mudar de tema e insistiu com Margarida.
"Como é que você soube dessa Amélia?"
A rapariga corou.
"Foi num momento... bem, uma altura em que estávamos os dois a sós. Aqui o Luís, em vez de me chamar Guida, no auge do... enfim, chamou-me Amélia." Fez uma expressão ofendida.
"Amélia, veja lá! É de uma pessoa ficar sentida, não é?" Voltou a fitar o namorado. "Mas afinal quem é essa Amélia?"
"Porra!", exaltou-se de novo Luís, batendo ruidosamente com o copo da cerveja na mesa.
"Vocês calam-se com isso ou não?"
"Pronto, pronto", murmurou Margarida, afagando-lhe o cabelo castanho-claro. "O menino não gosta de falar disto, pois não?"
Abraçou-o e beijou-o no rosto e nos lábios. Luís permaneceu um instante hirto, parecia uma estátua de bronze; mas logo o metal começou a derreter, o calor que a rapariga derramava sobre ele fazia gradualmente o seu efeito.
Sentindo-se a mais naquela cena melosa, Fernando pousou o copo de cerveja, deitou umas moedas sobre a mesa e levantou-se.
"Bem, vou-me embora."
Envolvidos um no outro, os dois namorados nem o ouviram. Ficaram sós na mesa, entregues aos lábios do outro, expostos aos olhares do café.
"Mas que deboche vem a ser este?"
Luís e Margarida descolaram-se e ergueram os olhos, surpreendidos com o tom agreste da interrupção. Um homem baixo e magro, de cabelo negro brilhante puxado para trás, observava-os com severidade.
"Perdão?", perguntou Luís, ajeitando os cabelos que lhe tinham descaído para a testa.
"Estamos num lugar público, por amor de Deus", rosnou o desconhecido. "Haja maneiras!"
"Como?"
"Isto aqui não é a bandalheira de outros tempos, ouviu? Onde pensa o cavalheiro que está? Aqui há respeito! Aqui há ordem!" Ergueu o dedo, parecia que pregava no púlpito. "E
para haver respeito e ordem é preciso primeiro haver decoro e decência!"
Seria um padre?, interrogou-se Luís. Mas ali, no Parque Mayer? O que faria um padre naquele antro de pecado?
"Quem é o senhor?"
"Chamo-me Aniceto Silva, mas decerto que o meu nome não lhe diz nada", apresentou-se o homem, muito dono de si. "O que interessa é que sou um bom português, homem honrado e cumpridor, amante da ordem pública. E o que o cavalheiro e esta... esta menina estão a fazer, aqui à vista de toda a gente, é altamente reprovável." De novo o dedo no ar, para sublinhar a apreciação. "Altamente reprovável!"