"Mas o que tem o senhor a ver com isso?"
"Tenho o mesmo que tem qualquer pessoa que se vê confrontada com atentados à moral e aos bons costumes. As pessoas têm de saber comportar-se em público, que diabo! E
quando não sabem alguém tem de lhes chamar a atenção."
Luís sentiu a irritação crescer dentro de si. Aquela conversa humilhava-o diante da namorada. Quem era aquele tipo para se lhe dirigir naquele tom? Com quem pensava ele que estava a falar? Não havia dúvidas, precisava de o pôr na ordem.
"Desculpe, mas o que eu faço é um problema meu e só meu", disse, empertigando-se.
"Ninguém tem nada a ver com isso e não lhe admito homilias, percebeu?"
"O cavalheiro admitirá o que tiver de ouvir pelo seu comportamento à vista de todos", devolveu Aniceto Silva sem vacilar. Parecia um mestre-escola. "O que o cavalheiro faz no recato do seu lar é lá consigo e com a sua... a sua senhora. Mas aqui, perante toda a gente, mesmo que seja no Parque Mayer, o que o cavalheiro faz é um problema de toda a gente, percebeu? De toda a gente."
"Eu sou livre de me comportar como muito bem entender e o senhor não tem nada a ver com isso."
O homem soltou um riso trocista.
"Não me venha falar do que é ou não livre de fazer. O que sabe o cavalheiro sobre o que é ser livre? Será livre de andar nu na rua? Será livre de se envolver em cenas... em cenas destas? A sua liberdade tem o limite do respeito, da moral e do interesse comum, percebeu?"
"Mas que descaramento!", ripostou Luís. "O senhor viu--me a prejudicar alguém?"
Alguns dos fregueses começaram a aperceber-se da altercação e olhavam com crescente interesse na direcção da mesa.
"Prejudica a raça!"
"Qual raça?"
O homem fez um gesto que englobou toda a gente no café.
"A nossa, claro! Somos uma raça admirável, meu caro cavalheiro. Parecemos pequenos e insignificantes, não parecemos? Ninguém dá nada por nós, aqui perdidos neste recanto da Europa. Mas a verdade é que descobrimos dois terços do mundo e erguemos um império que nem os Alemães alguma vez sonharam ter. Um império que chegou aos cinco continentes! É obra, que diabo!" O tom tornou-se sarcástico. "Acha que foi com liberdade que fizemos tudo isso? Acha?" Abanou a cabeça com violência e levantou a voz, galvanizado. "Não foi!" Ergueu o punho fechado e fez força. "Foi com disciplina. Sem ela, nada seríamos, percebeu? Somos um povo grande, mas é uma grandeza que nasce da ordem que nos impomos a nós contra a nossa própria natureza." "De que raio está o senhor a falar?"
"Estou a falar dos traços da nossa raça! Estou a falar deste povo afável, esperto, hospitaleiro, trabalhador, com um grande espírito de sacrifício. Estou a falar de tudo aquilo que nos está na massa do sangue. O problema é que sofremos de excesso de sentimentalismo e temos um horror absoluto a disciplina. Há demasiado individualismo e défice de tenacidade nas nossas gentes. Daí que precisemos de ordem, de respeito e de bons usos e costumes." Indicou Luís e Margarida com a mão. "É por isso que é preciso combater esta vossa tendência para o abandalhamento. Porque o..."
"Desculpe?", atalhou o transmontano, definitivamente irritado com o inopinado sermão. "Bandalho é o senhor! Como se atreve a vir aqui incomodar-nos com essa conversa para tolos?"
"Como?" O homem ruborizou, a irritação deixando-o em ponto de fervura. Espetou o corpo para a frente, a expressão muito indignada e os olhos injectados. "O que me chamou o
cavalheiro?"
Vendo o desconhecido inclinar-se agressivamente sobre si, Luís ergueu-se da mesa e encostou a cara à cara do outro.
"Chamei-lhe o que o senhor me chamou. Porquê?"
Os clientes do café acercaram-se da mesa, na expectativa de um confronto, e um deles, de ar mais janota, com um fato à Príncipe de Gales, acorreu a intervir.
"Calma! Calma!", disse ele, tentando interpor-se e separar Luís do outro. "Não se exaltem, vamos lá." Fez um gesto na direcção de Margarida, que tremia no seu lugar. "Estão aqui senhoras, haja maneiras."
Apesar dos esforços para os separar, os dois mantiveram-se de rosto colado, olhando-se furiosamente.
"Já vi que o cavalheiro é do reviralho", rosnou Aniceto Silva.
"Se calhar sou. E depois?"
"O reviralho é a escória deste país."
"Talvez estejamos a precisar de alguma escória, quem sabe? Pode ser a maneira de correr com alguns camelos que por aqui andam a meter o nariz onde não são chamados."
Aniceto descolou por fim a cara, mirou Luís com uma expressão de desprezo e apontou-lhe o dedo.
"Eu, se fosse a si, tinha cuidado, ouviu? Muito cuidado. Quem sabe se um dia não o apanho na esquina..."
Deu meia volta e afastou-se, desaparecendo por entre a multidão ávida de escândalo. Perante este abandono, o silêncio expectante no café logo se tornou burburinho e depois algazarra; a diversão tinha terminado e tudo regressava ao normal. Os clientes voltaram aos copos e às conversas, soltando ocasionais piropos às girls que iam passando a conta-gotas lá fora; dizia-se que as melhores eram as espanholas, ou pelo menos era essa a moda, pelo que todos se mantinham atentos à passagem das coristas, um olho na conversa e outro na rua, não fosse aparecer uma andaluza ou uma asturiana e perderem esses grandes espectáculos da natureza.
"Eu, no vosso caso, evitava voltar a cruzar-me com o Aniceto", soltou uma voz junto à mesa.
Ainda a recuperar da tensão vivida momentos antes, o casal de namorados ergueu os olhos e viu um homem encostado à parede a fumar, como se estivesse ali a aguardar que um lugar vagasse para se sentar. Era o desconhecido do fato à Príncipe de Gales.
"Porquê? O que tem ele?"
O homem aspirou o cigarro, fez uma pausa deliberada e soltou pelas narinas uma nuvem cinzenta que lhe ficou a pairar diante do rosto; parecia neblina a flutuar numa noite de bruma.
"É um tipo perigoso."
Atirou o cigarro para o chão, esmagou-o com o pé e foi-se embora.
III
O grupo de rapazes irrompeu pelo átrio da Escola Superior de Medicina Veterinária com um ar nervoso que de imediato atraiu a atenção de Luís. Alguns vinham vestidos de fato--
macaco, como se fossem operários, e outros apresentavam-se desarranjados, com as camisas fora das calças ou camisolas de lã remendadas nos cotovelos.
Um dos recém-chegados apareceu com um banco nas mãos, que claramente fora buscar a uma sala de aulas, e pousou-o no centro do átrio. Um rapaz de fato-macaco empoleirou-se no banco, o corpo elevando-se sobre o mar de cabeças.
"Atenção, pessoal! Atenção!"
A voz forte ressoou pela escola e em poucos instantes o átrio encheu-se de curiosos.
"O que é isto?", perguntou Fernando, abeirando-se de Luís. "Quem é este tipo?"
"Não sei. Chegaram aqui e o gajo pôs-se em cima do banco. Deixa ouvir."
O rapaz do banco fez sinal aos estudantes de que se aproximassem e então começou a falar.
"Camaradas!", gritou, erguendo os braços. "Camaradas, prestem atenção!" Aguardou um instante, enquanto se ouviam uns chius e o burburinho amainava, deixando o silêncio impor-se. "Camaradas, a liberdade está em perigo! A ditadura quer transformar os Portugueses num bando de cordeiros! Nós somos estudantes! Nós somos o futuro do país!
Temos de garantir os direitos do proletariado e do campesinato! Como estudantes, somos a vanguarda da classe operária! Temos um dever de rebelião e vamos revoltar-nos! Não votem nestas eleições! Não colaborem na farsa! Abaixo a ditadura!"
Algumas vozes no átrio ecoaram a palavra de ordem.