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"Abaixo a ditadura!"

Nesse instante foi desfraldada uma grande bandeira vermelha que todos reconheceram como a do Partido Comunista.

"Viva a liberdade! Viva o marxismo-leninismo! Viva o camarada Estaline!"

Soaram alguns "vivas", mas a maior parte dos estudantes observava a cena com estupefacção. Alguns dos jovens que faziam parte do grupo recém-chegado começaram a distribuir folhetos pelo átrio e Luís foi um dos que receberam um panfleto. O papel tinha uma frase à cabeça a dizer "Abaixo o Fascismo!" e uma foice e martelo estampadas a vermelho no canto, com a sigla FJCP.

"Larga isso", disse Fernando, puxando o braço do amigo. "Vamos embora daqui."

"Não. Deixa ver o que eles querem."

"Estás doido?" Apontou para um activista plantado à porta. "Repara naquele. Não vês o que o gajo tem metido nas calças?"

Luís olhou e viu a coronha de uma pistola a espreitar do cinto.

"Os tipos estão armados."

"Anda, vamos embora."

Antes que Luís respondesse, ouviu-se um apito e instalou-se de imediato a confusão. O rapaz do banco saltou para o chão, a bandeira foi recolhida e os outros puseram-se a abrir alas por entre a assistência.

"Polícia!", exclamou uma voz junto à porta da entrada. "Vem aí a polícia!"

O grito pareceu despertar a multidão da letargia. Desataram todos a espalhar-se pelo átrio, procurando sair do caminho do que quer que aí viesse, e Luís deu consigo a correr pelo corredor da escola ao lado de um rapaz de fato-macaco.

No meio daquela balbúrdia vislumbrou fardas a cruzarem a porta ao fundo do corredor e a entrarem no edifício. Olhou para o rapaz do fato-macaco e constatou que ele não tinha avistado a polícia. Pior do que isso, corria para ela como uma lebre em direcção à armadilha. Num gesto quase instintivo, agarrou-o pelo braço e travou-o.

"Por aqui!", disse.

"Larga-me!", gritou o rapaz, tentando sacudir a mão. "Larga-me, porra!"

"Por aqui", repetiu Luís.

Foi nesse momento que o militante comunista viu as fardas e compreendeu o gesto do rapaz que o travava. Sem dizer uma palavra, mudou de direcção e seguiu Luís, confiando nele como um cego confia no seu cão.

Meteram por uma porta lateral e foram dar a um laboratório. Ziguezaguearam por entre as mesas e Luís guiou o rapaz de fato-macaco para um compartimento anexo, onde se encontravam jaulas com pequenos animais. Dirigiu-se a uma porta e

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abriu-a. Era uma passagem de serviço que ligava o edifício ao pátio interior arborizado, um belo jardim naturalista, à maneira inglesa. O estudante empurrou o activista para fora e indicou um ponto à esquerda.

"Estás a ver aqueles portões ali? É a saída das traseiras."

O rapaz do fato-macaco apertou-lhe a mão.

"Obrigado, camarada", disse. "Sou o Zé Pereira."

"Luís Afonso."

O fugitivo deu uns passos, mas logo travou e olhou de relance para trás, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia.

"Olha lá, não te queres juntar à malta?"

Ignorando a pergunta, Luís apontou com insistência para o portão.

"Foge!"

A Escola Superior de Medicina Veterinária era aquilo que os amantes das palavras pomposas designavam por instituição vetusta. Nascera em 1830 com o nome de Real Escola de Veterinária, mas deixara de ser Real poucas décadas depois, talvez num acto de premonição do fim da monarquia. Era já uma instituição centenária, mas funcionava agora em instalações acabadas de erguer na Rua Gomes Freire. Na verdade, o edifício era tão recente que o cheiro a tinta fresca ainda vagueava pelo ar, apesar de nesse dia o aroma dominante ser o da insurreição.

"O Luís, tu estás parvo ou quê?"

Desciam a escadaria da escola, onde a calma já havia regressado, e Fernando acabara de ouvir o relato do sucedido na fuga.

"O que queres? Tinha de o safar."

"Mas o gajo era comunista, caraças!"

"Qual é o problema?"

Fernando revirou os olhos.

"Deves estar a gozar comigo", disse. "Para que é que o ajudaste?"

"Para o salvar."

"Mas porquê? És comunista?"

"Que eu saiba não."

"Então porque ajudaste o gajo?"

Luís meditou na pergunta.

"Se queres que te diga, não me entendo com os ares autoritários a que estes senhores se dão."

"Quem?"

"O regime."

"Mas que mal te fez o regime, caraças?"

O transmontano parou no pátio e seguiu com o olhar o balouçar insinuante das ancas de duas raparigas que subiam as escadas a par.

"Gosto de fazer o que me dá na real gana, sem ter de prestar contas a ninguém."

"Não é disso que estamos a falar. O que está aqui em causa é teres ajudado um comunista a escapar à polícia, quando o que devias ter feito era entregá-lo!"

"Não, o que está aqui em causa não é eu ajudar um gajo a safar-se à polícia. O que está aqui em causa é que eu não posso dar um beijo no café à minha namorada!"

"Ah, sim!", exclamou Fernando com uma expressão de sarcasmo. "Logo vi que era isso! Muito me admiraria se não houvesse saias por trás desta história."

"Não é uma questão de saias. É uma questão de liberdade, de poder fazer o que me apetece sem ter de estar a prestar contas a uns idiotas com a mania que são donos da verdade."

"Estás a referir-te ao tipo que te chateou ontem no Parque Mayer?"

"Estou a referir-me a tudo."

"Olha lá, como era em Trás-os-Montes? Também fazias com as miúdas o que te dava na real gana?"

"Claro que não. Foi por isso mesmo que vim para Lisboa."

"Julguei que tivesses vindo para ser veterinário..."

"Também. Junto o útil ao agradável, qual é o mal?"

Saíram do edifício e viraram à direita na direcção do jardim da Praça José Fontana.

Sentaram-se num banco junto ao coreto, por entre as tílias, a apanhar sol e a apreciar as raparigas que saíam do Liceu Camões. A manhã permanecia fresca, mas a luz do dia temperava-lhes o rosto com uma brasinha deliciosa.

"Ainda não me contaste como são as coisas na tua terra."

Luís encolheu os ombros.

"Não há nada para contar. Aquilo é província, vive-se com a mentalidade do século xix e está tudo dito."

"Passeias na rua aos beijos às gajas?"

O transmontano riu-se.

"Deves estar a gozar! Em Trás-os-Montes anda tudo muito controladinho, o que pensas tu?" Indicou uma estudante do liceu que acabava de passar diante deles, apressada. "Olha, para ver as miúdas... só às escondidas. As mães delas são do pior que há, nem imaginas. Se descobrem que há namorico é uma chatice."

"Estás a ver? Afinal em Lisboa não estamos tão mal como isso..."

"Em comparação com a província, claro que não. Era o que mais faltava! Lá na parvónia as mães dispõem da vida das filhas como muito bem entendem. Chegam a ser elas quem decide com quem vão as miúdas casar..."

"Estás a brincar."

Luís respirou fundo.

"Quem me dera", disse, subitamente cansado. "Fiquei farto daquilo e enquanto não vim para aqui não descansei. Prefiro estar em Lisboa à minha vontade e fazer o que muito bem entender, sem ter ninguém a chatear-me, a andar lá a aturar aquela mentalidade. É por isso que não tolero estes anormais com a mania de se meterem onde não são chamados, estás a perceber? Eles que vão para o inferno!"

O amigo fez um gesto conciliador.

"Está bem, eu entendo isso. Mas tu também tens de compreender que os tempos mudaram, Luís.

Lisboa pode não ser a província, mas mesmo assim é preciso ter tino. Isto não é como antigamente."

"Se calhar antigamente é que estava bem."

"Qual quê! Não havia autoridade nenhuma, era uma desordem que nem te passa pela cabeça."

"E achas que é à bofetada que se impõe a ordem?"