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"Se calhar é como dizia o outro: umas bofetadas bem dadas e na hora certa não fazem mal a ninguém. Podem até ter efeitos profilácticos."

"Isso, vai citando o Salazar."

"O Toninho tem razão, o que queres? Se os gajos desta manhã tivessem sido apanhados, levavam um sustozinho na esquadra e nunca mais se metiam noutra. Não há nada como uns bofes no momento mais oportuno."

"Dizes isso porque nunca os levaste."

"Não os levei porque nunca precisei. Sabes, Luís, o Estado tem de ter autoridade, e se o respeitarmos não haverá problemas." Mudou de voz, assumindo um tom declamativo. "Que o Estado seja tão forte que não precise de ser violento."

"Não me venhas com mais máximas de Salazar."

"Porque não? Se há ordem neste país, a ele o devemos."

"Não preciso deste tipo de ordem."

"Não me vais dizer que achas que é melhor vivermos na anarquia..."

"Na anarquia, não digo. Mas há de certeza coisas melhores do que isto. Passámos de um extremo ao outro, quando se calhar é possível encontrar um equilíbrio mais satisfatório."

Fernando fez um estalido com a língua, exasperado.

"Francamente!", exclamou. "Já viste o que aconteceria se o Toninho não estivesse cá?"

"Era uma maravilha. Para começar, sentíamo-nos livres."

"Não sejas parvo."

"Não me digas que gostas de ter estes idiotas à perna, sempre a dizerem-te o que podes e o que não podes fazer, como te deves comportar e vestir, o que deves dizer e o que não podes pensar, a avisarem-te de que tenhas sempre muito respeitinho, a impedirem-te de dar beijos à tua namorada na rua, a perseguirem-te por lançares uns vivas à liberdade, não podes isto, não podes aquilo..."

"Claro que não gosto. Mas já pensaste que este é o preço a pagar para que o país vá para a frente?"

"Balelas! Olha para a América, olha para a Inglaterra. Achas que eles precisam de palermas a dizerem-lhes o que as pessoas podem ou não fazer, dizer e pensar? E isso porventura impede-os de terem ordem e disciplina? Que eu saiba, são países onde o progresso existe sem ser necessário recorrer a estes ditadorzinhos de pacotilha."

O amigo olhou em redor, aflito, procurando certificar-se de que ninguém ouvira.

"Chiu", pediu. "Estás doido ou quê? Fala mais baixo. Não lhe chames isso..."

"Não lhe chamo o quê? Ditadorzinho de pacotilha?"

"Cala-te."

"Então vou dizer outra vez: ditador..."

"Assim vou-me embora!"

"...zinho de pacotilha."

Num assomo de irritação, Fernando ergueu-se do banco.

"Pronto, vou-me embora!"

Com uma gargalhada, Luís agarrou no amigo pela cintura e puxou-o para trás.

"Tem calma. Ninguém ouviu."

"Deixa-me!", insistiu o outro, tentando soltar-se. "Não estou para aturar isto!"

"Está bem, não volto a portar-me mal..."

Após uma breve hesitação, uma mera fracção de segundo em que avaliou a sinceridade da promessa, Fernando voltou a sentar-se.

"Ouve, Luís", disse, apontando-lhe o dedo em jeito de aviso. "Nós não estamos na América nem na Inglaterra."

"Infelizmente."

"Não digas disparates. O tipo de regime que eles têm não se coaduna com o nosso temperamento latino, que é desordeiro e individualista por natureza, como muito bem sabes. Tu viste a confusão que por aqui deu a democracia no tempo da república? E estás a ver a confusão que ela anda agora a dar em Espanha? É isso que queres?"

"De que te queixas? Em Espanha quem manda são as direitas."

"Mas há eleições. Quem me garante a mim que daqui a uns tempos as esquerdas não voltam ao poleiro?"

"Há sempre a Rússia", lembrou-se Luís. "Já viste a Rússia? Lá quem manda é o povo! A ditadura não é de um iluminado, como aqui, mas do proletariado. Não será isso bem melhor?"

"Também não estamos na Rússia. E ainda bem! Do que nos precisamos é de ordem, Luís. Não de ilusões! O exemplo

a seguir não é o da América, nem o da Inglaterra, nem o de Espanha, e muito menos o da Rússia. O exemplo a seguir é o da Itália, percebeste? Até os Alemães, que de parvos não têm nada, já o entenderam. Somos um império e um império não se mantém com capitalistas que só pensam no seu dinheiro ou com comunistas que só querem roubá-lo e esbanjá-lo e que nem sequer Deus respeitam! Um império ergue-se e mantém--se com sacrifício e com patriotismo. E para que haja sacrifício e patriotismo é evidentemente preciso ordem."

"Não me venhas com histórias."

"Não são histórias, Luís. É a pura verdade. Tu estavas lá a viver nas berças e se calhar não te apercebeste da rebaldaria que andava por este Portugal fora." Indicou o casario em redor da Escola Superior de Veterinária. "Mas eu nasci e vivi aqui em Lisboa e sei muito bem do que estou a falar. Sabes porque me irrito por te ver a ajudar aqueles comunistas?

Porque desde miúdo que ando a ver esta cidade em pé de guerra. Volta e meia os malucos lá pegam em armas e põem--se aos tiros e à canhoada e a malta que se aguente. E estes gajos que aqui vieram esta manhã representam o regresso a esse estado de coisas."

"Está bem, admito que as coisas antigamente fossem complicadas. Mas não há partos fáceis, pois não? A república podia não ser perfeita e permitir abusos, mas sempre era melhor do que isto."

"Isso dizes tu! Olha, eu tinha dez anos quando foi a Noite Sangrenta e não me esqueço da cara do meu pai ao chegar a casa. Vinha lívido, absolutamente horrorizado. Tinha assistido ao fuzilamento do Machado Santos ali no Intendente e ele próprio nem sabia como conseguira escapar à..."

"Qual Machado Santos? O herói da república?"

"Esse mesmo."

Luís franziu o sobrolho, interessado.

"O teu pai assistiu ao fuzilamento do Machado Santos? Nunca me tinhas contado essa."

"É verdade."

"Mas como?"

"Não te lembras das eleições de 1921?"

"Estás a gozar comigo? Eu era um fedelho, sabia lá o que eram eleições! Além do mais, em Trás-os-Montes passava-nos tudo ao lado."

"Aqui em Lisboa garanto-te que nada nos passava despercebido, sobretudo por causa da rebaldaria que se instalou com as eleições." Hesitou. "Instalou, é uma forma de dizer. Na verdade, a rebaldaria tinha começado muito tempo antes."

"Adiante, adiante."'

"Bem, o Partido Liberal ganhou as eleições de 1921 e os republicanos radicais, esses grandes democratas, não gostaram. Uns meses depois puseram a GNR e a Marinha em acção e deram ordem de caça ao primeiro-ministro, que era então o... como é que ele se chamava? O coiso... o Granjo, o José Granjo."

"António", corrigiu Luís. "António Granjo."

"Ah, então conheces a história."

"Estás parvo ou quê? Toda a gente conhece a história da Noite Sangrenta. O que eu nunca tinha conhecido era uma pessoa que tivesse assistido a isso."

"Assistir, assistir... não assisti. Mas ouvi." Apontou para o outro lado da praça. "Na altura morávamos ao pé da Avenidas da Liberdade e lembro-me de acordar com a artilharia pesada que a GNR instalou na Rotunda." Bateu duas palmas ruidosas, a simular detonações. "Pam! Pam! Até a casa tremeu. A minha mãe manteve-nos fechados no quarto e não nos deixou ver nada, mas o meu pai, que é militar, recebeu

imediatamente ordens para se apresentar ao serviço. Mandaram-no acompanhar o Machado Santos, que tinha a cabeça a prémio."

"Porquê?"

"Sei lá. Não gostavam dele, acho eu."

"E depois?"

"Os tipos revoltaram-se contra o governo saído das eleições e quiseram derrubar o Granjo, não foi? O que eles fizeram foi impor ao presidente da República uma série de nomes para o novo executivo, mas o problema é que o presidente se recusou a nomeá-los.