Выбрать главу

Foi então que os radicais organizaram um comboio para ir buscar uma data de personalidades que se lhes opunham para as entregar à GNR, aos marinheiros e à multidão.

Apanharam assim o primeiro-ministro e abateram-no como a um cão, a tiro e a golpes de espada. Depois mataram o comandante Maia e o comandante Silva."

"E o teu pai?"

"Ia com o Machado Santos quando a camioneta em que seguiam teve uma avaria no Intendente. A turba apanhou o Machado Santos e fuzilou-o logo ali. O meu pai ainda hoje não sabe como conseguiu fugir."

Luís coçou o queixo.

"Não há dúvida", concedeu. "Matar o primeiro-ministro e o herói da república foi um episódio chato, não se pode negar. Mas não temos agora de andar todos a pagar por esse disparate cometido há quinze anos, ou temos?"

"Há treze anos", corrigiu Fernando. "Foi em 1921."

"Não interessa. Já passou tempo suficiente."

"Ó Luís, tu achas mesmo que o que aconteceu na Noite Sangrenta foi um episódio isolado? Não foi! Não te esqueças de que tudo isso veio numa sequência de revoltas e mais revoltas. A instabilidade naquele tempo era permanente, os governos não se aguentavam, à mínima coisa saía toda a gente à rua aos tiros, a economia estava num estado calamitoso...

olha, daquela maneira não podíamos continuar a viver. Portugal estava transformado numa autêntica república de anedota."

"E agora? Não me vais dizer que chegámos ao paraíso..."

Fernando suspirou.

"A malta está cansada, Luís. Por que motivo pensas que o Toninho goza de tanto apoio popular? O pessoal está fartinho de confusão, quer é ficar descansado e viver a sua vidinha em paz." Meneou as sobrancelhas, condescendente. "Está bem, às vezes cometem-se uns abusos, a liberdade até podia ser um pouquinho maior, admito que sim. Mas esse é um pequeno preço a pagar pelo descanso que agora temos. Tu achas que há alguém de bom senso que queira voltar às trapalhadas da república?"

"Por acaso há."

"Quem?"

Luís indicou o edifício bege da Escola Superior de Medicina Veterinária, mesmo à direita, uma grande bandeira pendurada no mastro da varanda sobre a entrada principal.

"Aqui na faculdade, por exemplo. Aqueles tipos que vimos esta manhã acham que devíamos derrubar este regime."

"Oh, o que sabem eles da vida? São uns idealistas, uns sonhadores, não têm noção de nada."

"E tu? Tens?"

"Tenho mais do que a maioria. Possuo sobretudo memória e se há coisa que sei é que não quero voltar ao antigamente."

"Falas como se, com Salazar, a paz se tivesse instalado no país. Mas isso não é verdade.

Quando cheguei aqui a Lisboa dei logo de caras com a confusão. Lembro-me perfeitamente dos atentados à bomba que para aí houve e de ver os republicanos e os sindicalistas a manifestarem-se e a andarem constantemente à porrada com a polícia." Indicou de novo a fachada da escola. "Até aqui tivemos confusão, ou não te lembras das bulhas que houve entre a malta?"

Esta pergunta foi acolhida por Fernando com um sorriso.

"Então não me lembro?", retorquiu. "Eu próprio dei uns valentes estalos a um gajo do segundo ano, como é que ele se chama? O... o Armando. Aquele palerma andou a..."

"Achas que isso é que é a paz e a ordem do Estado Novo?"

"Nem queiras comparar."

"Ah, já não te convém a comparação..."

"São coisas diferentes."

"Dizes tu."

"Desculpa, mas não podes pegar numa meia dúzia de protestos envolvendo sindicalistas e estudantes e a partir daí dizer que a contestação ao regime é generalizada. Não é. O

pessoal está farto de confusão e apoia o Toninho."

"Então e a tropa?"

"O que tem a tropa?"

"A tropa que saiu à rua para derrubar o regime", disse Luís. "Foi há apenas três anos, não é há tanto tempo como isso..."

"O quê? Estás a referir-te à revolta de 1931?"

"Pois, já eu cá andava em Veterinária."

"Ora, um piquenique! E bem útil, aliás! Esses idiotas permitiram ao Toninho perceber quem estava com ele e quem estava contra ele. Se não fosse essa sedição de imbecis, se calhar ele não tinha podido passar o exército e a função pública a pente fino e livrar-se dos indesejáveis." Soprou para a mão. "Pffff! Adeus reviralho! Foi o canto do cisne desses cretinos."

"Qual canto do cisne? Então e a greve geral? Que eu saiba foi há apenas..." Fez um rápido cálculo mental, com a ajuda dos dedos. "Cinco meses... menos do que isso."

"Outro fracasso! A excepção da Marinha Grande, no resto do país os reviralhistas falharam por completo."

"Não estás a perceber, Fernando. O que está em causa não é o fracasso da greve. É evidente que, com toda esta repressão, ela ia fracassar. O que eu estou a tentar dizer é que, e ao contrário do que tu defendes, o reviralhismo não acabou. Não te esqueças de que a greve geral é muito recente. E não te esqueças do que vimos ainda hoje aqui na escola. Isso mostra que a oposição está bem viva."

"Estava, Luís. Estava. Olha o que aconteceu ao professor Sousa. Foi dos poucos que aderiram à greve e o que lhe sucedeu? Acabou por ser despedido. Nunca mais poderá trabalhar para o Estado."

"Foi muito corajoso."

"Foi muito parvo, queres tu dizer. Achas que o resto do pessoal lhe quer seguir o exemplo?"

Luís quase saltou.

"Então estás a dar-me razão!"

"Em quê?"

"Se mais pessoas não aderiram, não foi porque defendem o regime. Foi porque têm medo. As pessoas têm medo de dizer o que pensam! E quando dizem têm logo a polícia à perna, como se viu ainda esta manhã. Vivemos num país de medo."

"Essa conversa só é válida para meia dúzia de intelectuais com a mania que sabem tudo."

Indicou um transeunte que passava naquele momento. "O Zé Pagode está-se nas tintas para isso. O

fracasso da greve geral é a prova de que o povo está cansado de confusão e quer é ordem e paz.

Ninguém se

167

esquece de que quem pôs o país nos eixos foi o Toninho. Sem ele, isto não ia a lado nenhum."

"Quem fez fracassar a greve geral não foi o povo, foi a polícia e o exército."

"O povo está com o Toninho, Luís. Além disso, não te esqueças de que a ditadura até tem sido mais democrática do que a república."

O amigo soltou uma gargalhada sem humor.

"Não me faças rir!"

"Achas graça? Mas é verdade!"

"A ditadura? Mais democrática do que a república? Em quê?"

"No sufrágio universal, por exemplo. Os republicanos eram uns grandes democratas, não eram? Mas depois montaram um esquema em que só uma pequeníssima parte da população podia votar. Ou seja, os deputados não representavam o povo, mas um punhado de idiotas pertencentes à elite! Além do mais, nem sequer deram direito de voto às mulheres! Eram progressistas que se fartavam, mas não deixavam as mulheres votar! Foi preciso vir o Toninho para que as mulheres tivessem o direito de voto! Só no ano passado é que as mulheres foram pela primeira vez às urnas em Portugal, ou já te esqueceste?"

"As eleições vão ser este ano."

"Estou a referir-me ao referendo da Constituição, idiota. O Toninho pô-las a votar, coisa que esses grandes democratas da república foram incapazes de fazer."

"Lá teriam as suas razões..."

Foi a vez de ser Fernando a rir-se.

"Eles tinham era medo de perder, é o que era!", exclamou. "Sabiam que, se deixassem os camponeses votar, os monárquicos ganhavam! E sabiam que, se deixassem as mulheres votar, a

Igreja Católica ganhava! Logo, tudo fizeram para controlar o voto e só deixaram votar aqueles que eram pela república! Achas que isso é democracia? Só votam aqueles que votam por nós?"