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"Ó Graciete! Gracieeeete!"

"Senhora?", respondeu uma voz longínqua.

"Preparas aí uma merendinha para o menino Luís, ora preparas?"

"Sim, senhora."

Percebendo que a preparação da merenda se iria eternizar, Luís pegou apressadamente na mala, que deixara encostada à parede do corredor, e correu lá para fora.

"Até logo!"

"Espere!", gritou dona Hortense da cozinha, apercebendo-se de que ele saía. "Espere pela merendinha, valha-me Deus."

A voz dele desaparecia já na rua.

"Adeus!"

A dona da pensão veio à porta da hospedaria, a sua figura larga a encher a entrada, e ficou a vê-lo descer a rua.

"Aiche, onde é que já se viu isto?", protestou ela, abanando a cabeça com uma expressão reprovadora, os braços à ilharga em pose afirmativa. "Olhem-me o moço, credo!

Parece endiabrado!" Esticou o pescoço gordo e atirou em voz alta, na esperança de ainda ser ouvida: "Se a sua tia sabe, vai-lhe ler a panjelíngua! Ai vai, vai!"

Alheio à voz que se esganiçava lá para trás, Luís estugou o passo em direcção ao liceu.

Na verdade, não ia atrasado; tinha era pressa de chegar cedo. A excitação acelerava-lhe os movimentos, queria espreitá-la a entrar no edifício e adivinhar-lhe no rosto se pensara tanto nele como ele pensara nela.

Passou à frente de duas lojas e, abrandando, mirou-se no reflexo das vitrinas. Ia janota, o cabelo liso bem penteado para o lado, o corpo alto e elegante, o vestuário claro impecavelmente arranjado; não parecia o transmontano que era, mas um lisboeta que acompanhava a moda parisiense. Tivera o cuidado de vestir nessa manhã as suas melhores roupas e fez uma nota mental para, de tarde, dar um salto ao alfaiate e comprar calças e camisas ainda mais vistosas do que aquelas que trazia agora. Talvez até uma água-de-colónia.

Retomou a marcha e, como planeara, chegou cedo ao liceu. O movimento era ainda lento àquela hora matinal e Luís ficou cá fora a contemplar as chegadas. Os alunos vinham ainda a conta-gotas, a maior parte a pé, alguns de bicicleta, um ou outro era largado por um carro. Mas a manhã nascera fria e a exasperante inactividade da espera começou a deixá-lo gelado, pelo que, a contragosto, decidiu aguardar no interior. Não era decerto ao borralho, mas sempre se estava melhor.

Alguns colegas de turma vieram ter com ele para combinar um jogo de trincassuada no recreio, mas, de modos impacientes e olhar distraído, Luís não alimentou a conversa e eles acabaram por ir procurar parceiros para outro lado.

A medida que a hora do início das aulas se aproximava, o pingar de entradas foi-se intensificando até que se tornou corrente, era já um caudal de gente que afluía sem cessar pela

porta, numa crescente animação, a algazarra enchendo agora o pátio do liceu. Luís perscrutou com impaciência a multidão de rostos jovens e procurou Amélia a cada face, a cada corpo, a cada voz. Mas não a viu.

O primeiro toque soou e ele suspirou, decepcionado. Deu meia volta e percorreu apressado o corredor em direcção à sala. O dia começava com Matemática e nem pensar em chegar atrasado. O professor Marques não era para brincadeiras.

Seguiu a aula distraidamente, prestando à matéria a atenção mínima que a cautela requeria. Tomou os apontamentos que precisava de tomar, mas os olhos fugiam-lhe amiúde para a janela, como se na rua encontrasse a resposta para a raiz quadrada da equação seguinte. Da janela os olhos voavam para o relógio, do ponteiro dos minutos para o professor, da figura esguia do professor Marques para o caderno e de novo para a janela.

Uma deliciosa impaciência ruminava-lhe no peito; queria vê-la e não havia meio de a aula terminar, tinha a impressão de que nunca uma hora lhe parecera tão longa.

Foi só ao segundo intervalo, entre as aulas de Biologia e Desenho, que deu com Amélia.

Estava encostada a uma parede à conversa com duas amigas e ria-se com uma alegria desprendida. Luís sentiu um baque no peito ao vê-la assim tão contente. Como é que ela se consegue rir?, interrogou-se, perturbado. Então ando eu aqui de rastos, a morrer de impaciência por lhe pôr os olhos em cima, e ela a rir-se? Fitou-a com apreensão, preocupado com a possibilidade de ter interpretado mal as reacções dela na véspera, fazendo tábua rasa de tudo o que excitadamente concluíra ao longo de todas aquelas horas em que estivera fechado no quarto. Será que lhe sou indiferente? Serei eu apenas mais um?

Procurou-lhe os olhos, mas ela mantinha-se embrenhada na conversa com as amigas. Parecia divertida e ria-se e sorria com frequência. Do que se ri ela? Será de mim? Perscrutou-a com atenção, tanta que a perturbação se evaporou e a mente se deixou enlevar pelo brilho que dela emanava. Que sorriso tão bonito, pensou. Tão bonito, parece que cintila! Quando ela sorria, não era só a boca que sorria, eram os olhos, as bochechas, todo o rosto, o corpo inteiro. Abanou a cabeça, quase desesperado. Realmente, como posso eu atrever-me a desejar uma coisa assim tão bela?

Suspirou, o peito oprimido pela angústia.

Foi então que os olhos se cruzaram.

Amélia deixou um sorriso suspenso enquanto o seu olhar cor de mel pousava em Luís. A graça parecia soltar-se-lhe naquele olhar. Viu-o, acenou timidamente e voltou a atenção para as amigas, mas com o ar algo comprometido.

Algumas notaram o gesto e viraram para ele as atenções, para logo se multiplicarem em risinhos e em murmúrios excitados.

"Olha para ele, olha para ele!", cacarejou uma voz no meio do pequeno tumulto.

"Onde?"

"Ali, parva!"

Risinhos.

Apanhado de surpresa pelas vozes indiscretas que flutuavam no corredor, Luís percebeu que falavam dele. Sentiu-se um animal enjaulado no zoológico e lidou mal com o desconforto.

Embaraçado e irritado por se ter tornado objecto de tanto comentário mexeriqueiro entre as raparigas, voltou as costas e afastou-se com gestos alheados, como se a troca de olhares com Amélia tivesse sido acidental, coisa demasiado insignificante para justificar tão grande alarido.

III

Andou dias à procura de uma oportunidade, mas as coisas pareciam difíceis e a possibilidade de conseguir um momento a sós com Amélia escapava-se-lhe. Até que, na semana seguinte, quando já desesperava, a apanhou sozinha num intervalo das aulas, debruçada sobre um livro volumoso na biblioteca do liceu. A biblioteca estava quase deserta e, enchendo-se de coragem, o ritmo cardíaco acelerado e a garganta subitamente seca, Luís aproximou-se e sentou-se ao lado dela.

"Ora viva", saudou, surpreendido com o seu próprio atrevimento. "Por aqui?"

Ela olhou-o com uma expressão de admiração e corou ao reconhecê-lo.

"Olá", devolveu, baixando de imediato os olhos para o livro, o ar muito comprometido.

Ele inclinou o rosto para o volume que ela tinha aberto sobre a mesa de madeira.

"Então? A estudar?"

"Sim."

"Está a ler o quê?"

Ela ergueu os olhos e girou o rosto em redor da biblioteca, como se receasse ser vista por alguém.

"Por favor, as minhas amigas podem aparecer a qualquer momento."

"E então? Elas comem-nos?"

"Não, mas... mas podem aparecer."

"Que eu saiba, não estamos a fazer nada de mal, pois não?"

Amélia pareceu por momentos ter perdido as palavras, como se o que quisesse dizer fosse tão óbvio que nem precisasse de ser dito.

"Elas vão comentar", observou por fim.

"E depois? Não me diga que tem medo daquelas galinhas..."

Ela soltou um riso nervoso.

"Não é isso. Mas são minhas amigas... Vai haver falatório, já sabe como é."