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"Naquele tempo, ao menos, podia-se dizer o que se queria."

"Ah, sim! Falar era com eles, lá nisso ninguém os batia. O problema era quando chegava a hora de fazer coisas. Ui! Aí é que era uma chatice!"

"Desculpa lá, mas quem te ouvir e não souber como as coisas realmente são ainda vai pensar que Salazar é um democrata."

"Este ano vamos ter eleições."

"Eleições da treta! Só cinco por cento das pessoas é que podem votar e há apenas um partido inscrito! Achas que isto são eleições que se façam? É tudo uma fantochada!"

"Ora! Que eu saiba o Toninho nunca fingiu ser um democrata, antes pelo contrário. Além do mais, a União Nacional não é um partido. A Constituição não permite a existência de partidos."

"Claro que a União Nacional é um partido, só que lhe dão outro nome. Mas não enganam ninguém."

"Ouve, Luís", disse Fernando num tom paternal. "Os partidos só servem para dividir e a nação não precisa deles para nada. Portugal é um todo, é um corpo único. Os partidos só representam os interesses de determinado grupo e servem apenas para fragmentar o país. Se os deixarmos tomar conta do regime podem levar Portugal à ruína, como se viu com a república."

"Se assim é, por que razão se dão ao trabalho de organizar eleições? Hã? Não era mais fácil governar sem estar a montar esta palhaçada toda?"

"Sim, tens razão", concordou Fernando. "Mas acho que é uma maneira de legitimar o governo aos olhos do mundo.

Além do mais, vai servindo para ver onde está a oposição, não é verdade? A polícia agradece e actualiza os ficheiros..."

Aquele era um assunto em que nunca se iriam entender, concluiu Luís. Não fazia sentido prosseguirem a conversa, não iam chegar a sítio nenhum. Apercebendo-se das horas, levantou-se e deu umas palmadas nas nádegas para sacudir o pó que ficara colado às calças.

"Portanto, achas que agora é que é bom, não é?"

"Não sei se é bom, mas as coisas estão pelo menos muito melhor do que estavam."

"Então fica-te com a tua que eu fico-me com a minha", disse, em jeito de conclusão, pegando na pasta.

"Onde vais?"

Luís abriu a pasta e retirou um papelinho com o horário.

"Para as aulas, para onde haveria de ir?"

O amigo rolou os olhos e levantou-se a custo.

"Que chatice", resmungou, voltando o rosto para o Sol para gozar os últimos raios.

"Estava-se aqui tão bem..."

"Pois é, mas há que trabalhar."

"Temos Parasitologia, não temos?"

Luís ia já em direcção à porta de entrada do edifício e abanou a cabeça, corrigindo o amigo.

"Zootecnia Tropical."

IV

Apesar de as conversas políticas serem recorrentes, os dois nunca se chegaram a entender sobre o Estado Novo. Os argumentos de Fernando faziam sentido à sua maneira, os factos históricos que apresentava eram verdadeiros, mas mesmo assim havia algo que deixava Luís desconfortável. Não sabia o quê, mas o transmontano queria mais do que aquilo que via à volta. Devia haver melhor do que a mão de ferro sob a qual o país asfixiava. Era uma questão de procurar.

Procurar foi coisa que ele não deixou de fazer desde o dia em que compreendeu que Amélia nunca seria sua. A partir desse momento a sua vida tornou-se uma permanente busca, mas durante muito tempo não percebeu o que procurava. Procurava, e era tudo. Mudou-se para Lisboa alegando que ia tirar Veterinária, mas foi na verdade procurar. Procurou mulheres, procurou livros, procurou ideias. Sabia que tinha de encontrar algo, mas não percebia exactamente o quê.

Até que um dia, já perto do final do curso em Lisboa, entendeu finalmente. Não foi um grande acontecimento que trouxe a luz que lhe iluminou a consciência. Tratou-se antes de um pequeno incidente, uma verdadeira minudência, coisa tão ridiculamente trivial que jamais a guardaria na memória não fosse a poderosa cadeia de raciocínios que tal insignificância desencadeou, como um minúsculo calhau cuja simples deslocação acidental inicia a devastadora avalancha que tudo muda.

Acontece que, numa noite de Junho inesperadamente fresca, tinha ido ao São Luís Cine ver um filme com Fernando, como era costume às sextas-feiras. A fita dessa noite foi Uma Loira para Três, película americana que atraíra grande clientela masculina, ou não fosse a estrela principal quem era.

"Esta Mae West é um espectáculo", observou Luís no elegante foyer do mais chie dos cinematógrafos de Lisboa.

"Mulher endiabrada", concordou Fernando, os olhos a passearem pelas lápides de mármore com cartazes a exibirem os rostos dos grandes nomes do cinema. "Mas confesso que aprecio mais a Garbo. É uma beleza mais graciosa."

Saíram à rua e Luís reparou nas películas brancas que se espalhavam pelos ombros do casaco do amigo.

"Olha lá, estás cheio de caspa."

Fernando espreitou os ombros.

"Pois estou", constatou. Tentou sacudir as películas com os dedos. "Comecei agora a usar o Petróleo Hahn. Vamos lá a ver se faz efeito."

"Isso é mesmo bom?"

"Sei lá."

Luís aproximou o nariz do cabelo do amigo e inspirou duas vezes.

"Pelo menos não cheira a estrume."

Iam assim a conversar pela rua, brincando um com o outro e discutindo mundanidades, quando, depois de descerem o Chiado e ao chegarem ao Rossio, Luís reparou numa mulher andrajosa encolhida numa manta e sentada sobre folhas de jornal estendidas no passeio. Era já noite cerrada e a mulher tinha encostada ao peito a cabeça suja de uma criança adormecida, por certo a filha, e ao lado encontrava-se um cesto de vime com um bebé embrulhado lá dentro. Talvez aquela mãe nem fosse mulher, apenas uma rapariga que a vida prematuramente envelhecera, mas algo na sua fisionomia atraiu a atenção do estudante. Tratava-se de qualquer coisa de indefinível, talvez do fardo da miséria que lhe pesava nos olhos, quiçá do alívio que buscava no braço estendido aos transeuntes.

"Dê-me uma esmolinha, por amor de Deus."

Também a ele a pedinte dirigiu o braço suplicante. Em vez de a ignorar ou de lhe lançar umas moedas de caridade, porém, Luís ficou momentaneamente a contemplá-la. Já tinha visto muitos pedintes nas ruas, Lisboa estava cheia deles, sujos, andrajosos e deformados, mas percebeu que era a primeira vez que os via mesmo. Via-os.

Foi o momento da epifania. Numa explosão de consciência, Luís caiu em si e compreendeu por fim o verdadeiro desígnio da sua busca. A justiça. Como se tivesse sido atingido por um raio de luz, teve nesse mesmo instante a noção de que, desde que Amélia lhe havia sido retirada, a sua vida se tinha transformado numa demanda contra a iniquidade.

A rapariga estendia-lhe o braço a implorar uma esmola e era como se fosse ele de braço estendido à vida a clamar por justiça.

Percebeu então que carregava dentro de si a revolta reprimida pelo amor que lhe havia sido roubado e alimentava uma sede louca, sôfrega, dolorosa, de justiça. Não queria vingança, não era disso que se tratava; procurava apenas um sentido de justiça. Vendo bem, considerou de imediato, se calhar nem era tanto a justiça o que verdadeiramente o atormentava, mas a injustiça. Incomodava-o a incerteza da vida, a arbitrariedade da sorte, a perversidade do destino. Com a imagem da pedinte esfarrapada diante dele, como um pequeno alçapão que se abriu e revelou o mais fundo de si mesmo, descobriu que o que realmente buscava era um sentido para a dor que não abrandava, e essa busca traduzia-se na demanda de um significado para a injustiça da existência.