"Então?", impacientou-se Fernando. "Vens?"
Quase automaticamente, Luís recomeçou a andar, mas sempre perdido nos seus pensamentos.
Murmurou algo imperceptível, tão incompreensível que levou o amigo a chegar-se mais a ele.
"O quê?"
Repetiu mais alto:
"Viver é sofrer."
Essa foi uma frase que lhe martelou na cabeça desde esse dia. Viver é sofrer. Essa verdade eterna estava-lhe presente na carne havia muito mais tempo do que imaginava.
Qual a justiça de ter perdido os pais ainda em criança? Qual a justiça da miséria e da fome da pedinte com o braço estendido? Qual a justiça de lhe ter sido roubada a paixão do liceu?
A infelicidade e o sofrimento, a perda e a dor, o que eram senão a regra deste mundo?
Onde havia justiça no tormento?
Não. Em definitivo, viver é sofrer. Nós é que procuramos instituir alguma justiça onde ela por si mesma não existe. Tudo é injusto, o sofrimento está em toda a parte, a dor é permanente. Bastava, aliás, olhar para os animais que estudava na Escola Superior de Veterinária e perceber o seu modo de vida na natureza, vê-los a caçar, a devorar, a fugir e a ser
devorados. Era afinal a isso que se resumia a sua existência, um permanente estado de horror e de flagelo em que a cada dia, a cada hora, a cada segundo, milhões de seres eram despedaçados e comidos vivos para sustentar uma única refeição de outros seres igualmente acossados por outros predadores. Disfarçada pela máscara cintilante da civilização, que polia a realidade com o talento lustroso de um ilusionista, a vida dos homens não se afigurava em boa verdade muito diferente da dos animais, como se podia descobrir no rosto e na vida daquela mulher que vira no Rossio. Para ela não havia animatógrafo nem poesia, apenas a mão estendida para sobreviver a esse dia.
Começou a convencer-se de que o mundo não tinha significado nem propósito; existia simplesmente, com desprendimento, alheio ao espantoso sofrimento que as suas regras implacáveis ditavam. Cada vida é uma tragédia imensa para quem a vive, mas cruelmente insignificante à escala do universo. Os seres vivos sofrem e o mundo mostra-se estranho a esse sofrimento, encarando-o com indiferença, aceitando-o como fazendo parte da ordem natural das coisas, como se a dor fosse o motor da existência, a iniquidade o seu preço. Cada desejo procura satisfação, cada obstáculo gera sofrimento. Mesmo a satisfação de um desejo apenas suscita felicidade temporária; logo a seguir vem um novo desejo, de novo travado por mais um obstáculo, o que significa que a existência é sempre luta, o sofrimento omnipresente, a felicidade efémera. Caramba!, pensou enquanto cogitava sombriamente sobre a tragédia da vida. Olhem para Dante, que não teve qualquer dificuldade em imaginar o Inferno... Bastou-lhe ir buscar os elementos que já existiam no mundo e, pimba!, eis o Inferno! Mas, oh!, quando chegou a hora de conceber o Céu, aí é que foi o cabo dos trabalhos! O
grande poeta não
teve artes para imaginar o Céu porque não havia neste mundo nada que o inspirasse para conceber o Paraíso! Nada! Meu Deus, não será isso a prova mais completa de que nós afinal vivemos no Inferno?
A descoberta deixou-o deprimido. Vivemos no Inferno! Se o sofrimento é a regra da vida, então Luís precisava de compreender a razão de estar ali, de respirar, de viver para o momento seguinte. Por que motivo era o mundo internamente doloroso? Qual o desígnio superior que o tormento servia? Qual o propósito de tanta dor?
Apercebeu-se de que, durante todos esses anos, fora essa busca que alimentara a sua convicção de que era necessária uma mudança. Mudança de Bragança para Lisboa, mudança de mulheres, mudança de políticos. Luís passou a viver obcecado pela mudança.
Mudança significava mudar o presente, mas mudá-lo em busca de algo melhor. E o que era o melhor? Para seu pasmo, tomou consciência de que, para si, o melhor não era o futuro, nunca fora o futuro, mas o passado. O passado. E o passado eram os passeios matinais de mão dada até ao liceu de Bragança, o passado eram os olhos cor de mel por que se apaixonara anos antes, o passado era ela. Ela. Ah, como tinha saudades de Amélia!
No rescaldo da sua epifania no Rossio compreendeu gradualmente que todas as mulheres que tivera, todos os corpos que gozara, todas as almas que amara não eram mais do que representações do seu único amor. Mudava de mulheres porque nenhuma era Amélia e no seu íntimo não aceitava que o seu verdadeiro amor estava agora para sempre perdido. Pensava nela todos os dias, embora cada vez mais pausadamente. Dava-lhe a impressão de que o tempo a ia arrumando com cuidado num canto, como se fosse uma fera cuja fúria não queria atiçar; mas o facto é que a dor permanecia lá. Talvez não tão dilacerante como no princípio; transformara-se já em sofrimento crónico, era como o murmúrio do vento a fustigar as folhas, uma chama que ardia em lume brando, um estrépito de fundo que não explodia mas também não morria. Vivia em negação, recusava-se a aceitar as consequências da perda da sua amada, evitava o luto que talvez o libertasse.
Tudo o resto, a passagem para Lisboa, a oposição ao regime, o desejo insaciável de mudança, mais não eram do que sequelas do pecado original.
Sublimava essa ferida primordial de várias maneiras, e a forma como encarava o mundo em que vivia era uma delas. Queria mudar o presente e, em política, o que era o presente senão Salazar? Tornava-se, pois, necessário mudar Salazar. Era ele o rosto do estado das coisas, o símbolo da mentalidade que lhe levara Amélia. Mudando Salazar, mudava-se o pensamento tacanho e atrasado em que o país vivia, mas mudavam-se sobretudo os comportamentos mesquinhos e retrógrados que o haviam separado da eterna namorada. E
talvez acabasse a dor. Talvez.
Ao perceber tudo isto, Luís chegou à conclusão de que teria de se pacificar. Precisava de aceitar a realidade, não podia continuar assim, urgia sarar aquela profunda ferida. A única maneira de o conseguir era fazer o que sempre evitara.
O luto por Amélia.
Quando Luís decidiu ir para Lisboa, os maiores obstáculos aos seus projectos foram levantados justamente pela pessoa que tinha a responsabilidade de lhe dar o dinheiro para os financiar, a tia Maria. Mulher prudente e desconfiada, ou não fosse transmontana até ao tutano, não se cansou de sublinhar a sinistra fama das fêmeas de Lisboa, umas vamps e coisas piores. Dizia ela que, entre as raparigas e senhoras de Alfândiga da Fé, se sabia de ciência certa que a maior parte das lisboetas eram fadistas de reputação duvidosa, sinuosas sereias que, entoando traiçoeiros cânticos hipnóticos, eram capazes de desviar do bom caminho o mais sério dos moços, pois então não se descobrira que nem certos padres resistiam à terrível tentação quando frequentavam os antros de pecado na capital?
As lisboetas revelaram-se, pelo menos à primeira vista, à altura de tão questionáveis pergaminhos. Com o seu olhar limpo e porte elegante, Luís chegou à grande cidade e conquistou-as de enfiada. Volta e meia descartava uma e ia buscar outra; os admiradores chamavam-lhe o Casanova de Bragança, mas os detractores conheciam-no por Matadouro de Virtuosas. Quem o acompanhava de perto sabia que as lisboetas não eram na realidade as debochadas sereias comedoras de homens de que tanto se falava em Trás-os-Montes; o verdadeiro predador à solta por Lisboa era antes aquele transmontano de falas meigas e expressão sedutora, o rapaz que as coleccionava como se fossem borboletas.