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Luís estudou Veterinária dividindo os livros com os lençóis. Saltava da aula de Zootecnia Geral para a cama de Helena, dissecava um coelho em Anatomia Patológica e espremia um seio de Jacinta em anatomia feminina, discutia política com o amigo Fernando e amor com a varina Alzira.

"Há aqui muita matéria para estudar", gostava de dizer, um olho no livro, o outro na cachopa que se sentara ao lado.

Por vezes as aulas eram interrompidas por inspectores do regime, homens soturnos e de expressão severa que vinham lembrar aos futuros veterinários o seu dever de fazer "tudo pela Nação e nada contra a Nação", aforismo então muito em voga; e apontavam para a reforma agrária efectuada poucos anos antes na vizinha Espanha como prova final dos perigos decorrentes dos aventureirismos loucos e irresponsáveis dos comunistas espanhóis, os mesmos sob cuja asa, não se esqueciam de sublinhar, os reviralhistas portugueses agora viviam.

Noutros casos os visitantes eram meros propagandistas, figuras menores como aquele gordinho do Ministério das Colónias que um dia foi à sala convencer os alunos a assinarem um papel para se candidatarem a lugares no império colonial, "terra de oportunidades", ou a senhora de óculos e com ar de galinha depenada que apareceu à cata de talentos para uma das inúmeras iniciativas promovidas pelo Secretariado da Propaganda Nacional, a instituição recentemente criada com a missão de dinamizar o trabalho dos modernos criadores portugueses-na promoção do regime.

Com o amigo Fernando ia às películas mais picantes dos cinematógrafos de Lisboa. Todas as sextas-feiras saíam para ver as novidades, sendo que as maiores sensações eram em geral as do Tivoli. Aí assistiram a O Sinal da Cruz, fita que a publicidade dizia ser "da Roma antiga, das bacanais e das multidões nos circos"; está-se mesmo a ver que a referência às "bacanais" lhes excitou a imaginação, mas o filme nada mostrou que estivesse à altura de tão sensacional propaganda. Quem não os decepcionou foi Marlene Dietrich, a nova diva loura que, no mesmo Tivoli, apareceu nua numa cena do filme Cântico dos Cânticos, em que posava como modelo de um escultor. É certo que a nudez se anunciou fugaz e aquele grande mulheraço nunca chegou a cumprir a promessa de tudo revelar, mas, caramba!, já era bem mais do que as pernas, sempre belas é certo, que a actriz exibia profusamente em todos os seus filmes.

Os momentos solitários eram vividos à volta dos livros. As frequentes visitas às livrarias do Chiado puseram-no em

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contacto com a literatura e a poesia do seu tempo, mais os gigantes da filosofia. Conheceu poetas e escritores que frequentavam aquelas bandas, alguns dos quais partilharam consigo à mesa do café as suas prosas e poemas mais secretos; estudou Kant à luz do dia e Marx à chama do petromax, mas os seus preferidos revelaram-se Kierkegaard e sobretudo Scho-penhauer; e, claro, leu os clássicos da literatura, como Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, os seus favoritos; mas também se esforçou por entender os mais difíceis José Régio ou Raul Brandão. Entre os estrangeiros, as suas preferências iam para os franceses, em particular Zola, Flaubert e Hugo, mais os poemas de Baudelaire e Rimbaud, com deambulações não muito bem sucedidas por Proust ou Gide.

O seu predilecto era, todavia, o Romances sans paroles, embalado ao ritmo das nostálgicas palavras de Verlaine, que recitava em voz alta quando se achava sozinho no seu quarto da Rua Luciano Cordeiro:

II pleure sans raison Dans ce coeur qui s'écoeure. Quoi!

Nulle trahison?... Ce deuil est sans raison.

Cest bien la pire peine De ne savoir pourquoi Sans amour

et sans haine Mon coeur a tant de peine.

As saudades de Amélia, vibrantes na melancólica letra dos poemas que devorava à noite antes de desligar o petromax, corroíam-no até à exaustão. Refugiava-se na lembrança do olhar dourado de Amélia e a memória dos dias em que

passeara a namorada até ao liceu de Bragança pesava-lhe no peito, estreitava-o com tanta força que quase sufocava. Que feliz tinha sido em cada segundo que vivera naqueles inesquecíveis passeios até às aulas! Como fora estúpido em não perceber que a simples viagem da esquina da casa dela até à porta da sala onde a deixava era a coisa mais bonita que fizera na vida! O que daria para tudo viver outra vez...

Revivia esses instantes mágicos sempre que se achava sozinho à noite e era nas crises mais agudas de saudade, quando a nostalgia o apertava tanto que até se sentia asfixiar, que tomava a decisão fatídica. Tratava-se de uma decisão de paixão, como era natural nestas coisas, mas assumida com uma frieza arrepiante: ia deixar aquela e procurar outra namorada. As amantes não passavam de páginas de um livro, existiam para serem fruídas; lia-as com deleite e depois de consumidas passava à seguinte, atrás de uma vinha sempre outra. Talvez a seguinte lhe trouxesse o que procurava, o poema que lhe escapava em cada livro, o final em que culminaria toda a história: a magia perdida de Amélia.

A cerimónia de entrega dos diplomas foi, como sempre, muito concorrida. A ocasião era solene e celebrava um dos mais importantes momentos na vida de uma pessoa. O calor antecipava o Verão de 1935, com a luz quente a vestir a cidade de cor, o sol inclemente a arrancar reflexos do vidro das janelas e a semear tonalidades laranja nas telhas do vasto casario que ondulava pelas colinas.

Apesar do ar abafado, o anfiteatro da Escola Superior de Medicina Veterinária encheu-se de gente. Os professores e os recém-licenciados compareceram em peso, como seria de esperar; mas a maioria dos presentes eram os familiares dos homenageados, parte dos quais viera da província de propósito para a grande ocasião.

"Puf!", soltou a tia Maria, abanando o leque com movimentos lânguidos. "Isto está insuportável! Por amor de Deus, não haverá nenhuma alma caridosa que abra as janelas?"

Luís estudou os vidros por onde espreitava a luz do dia.

"Elas já se encontram abertas, tia. O problema é que o dia está quente. Além do mais, o ar não circula, é uma maçada."

A tia sorriu e apertou-lhe a bochecha.

"Oh, não faz mal!", disse, conformada. "O que interessa é que estamos os dois aqui e tu já és doutor."

"Só quando me entregarem o diploma..."

"Oh, isso é uma formalidade. Tu passaste, não passaste?"

"Claro."

"Então já és doutor! Um verdadeiro home-de-recibo!" Entrelaçou as mãos. "Ai se os teus pais aqui estivessem... o orgulho que eles teriam!" Suspirou e voltou a abanar o leque. "Deixa estar, não faz mal. Eu sinto-me orgulhosa por toda a família." Parou de novo o leque. "Olha lá, para onde é que vais trabalhar agora? Espero que vás lá para os Cerejais..."

"Não sei, tia. Não me apetece lá muito fechar-me na quinta."

"Então para onde vais tu?"

"Para já, vou amanhã ao quartel para me certificar de que passei à reserva militar. Depois vou ver as vagas que existem para veterinário."

"Ao menos vai para Alfândega."

"Vamos ver..."

Uma fila de homens de batina negra entrou no anfiteatro e logo se fez silêncio. A reunião adquiria súbita solenidade e os sussurros e as tosses substituíram a algazarra.

"Quem são?", perguntou a tia Maria, o leque diante da boca para lhe abafar a voz.

"São os doutorados. O da frente é o director."

A senhora contemplou-os, fascinada.

"Que gente tão distinta", murmurou. "São zaguchos, ora são?"

"Sim, muito espertos. Têm de ser, não é?"