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Os professores caminhavam com uma postura pomposa, pareceriam militares em parada se não fossem as batinas e o corpo curvado pelo hábito de se debruçarem sobre tanto livro.

"Mas têm um ar um pouco cediço", rematou a tia Maria, impressionada com a idade avançada de alguns.

Os professores subiram ao palanque e sentaram-se na longa mesa, enfrentando a assistência. O director, um homem frágil de bigode e sobrancelhas brancas e olhar cansado, conferenciou com os do lado por instantes, aparentemente a acertar procedimentos, até que se endireitou, olhou para a frente e pigarreou.

"Minhas senhoras e meus senhores", disse, a voz fraca e trémula. "Vamos dar início à sessão solene de formatura."

Depois de umas observações de circunstância, o director deu a palavra a um outro doutorado. Era um professor de meia-idade, o bigode e a barbicha pontiagudos e grisalhos, óculos muito graduados encavalitados sobre o nariz. O homem ergueu-se da mesa e, de olhos míopes quase colados ao papel, discursou sobre a nobre missão do veterinário e a importância do seu trabalho "para o progresso da nação". O discurso prolongou-se em tom monocórdico, algumas frases quase inaudíveis; mas as palavras adquiriram força quando o discursante, fazendo uma pausa na leitura e encarando a plateia, arrancou a frase de grande impacto.

"Temos obrigação de sacrificar tudo por todos", disse, "mas não devemos sacrificar-nos todos por alguns."

"Muito bem!", exclamou uma voz entusiástica.

As palmas ecoaram pelo anfiteatro, era de longe a tirada de melhor efeito de todo o discurso. A Luís, contudo, cheirou-lhe a plágio; havia ali dedinho alheio, por certo oratória com a assinatura inconfundível do Presidente do Conselho, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal.

Depois do discurso, um outro professor veio juntar-se ao orador com uma pequena caixa de cartão, que pousou sobre uma mesinha. Tirou uma folha do bolso do casaco e começou a chamar.

"Adão Miguel Antunes Telles."

Um estudante ergueu-se da plateia e caminhou com pouca confiança até ao palanque. Foi-lhe entregue o diploma e o rapaz voltou para trás muito corado e debaixo de uma regulamentar salva de palmas.

Os nomes sucederam-se e logo se tornou evidente que a ordem de chamada era alfabética. Luís sabia que antes dele vinha o Licínio, pelo que, quando o colega subiu ao palanque, se preparou para ouvir o seu próprio nome.

"Luís António Afonso."

Luís António Afonso.

Assim. Sem tirar nem pôr. O nome estava afixado na lista do quartel e Luís via-o, encontrava-se lá escrito com todas as letras, mas mesmo assim recusava-se a aceitar.

"Deve haver engano", exclamou, abanando a cabeça.

Fernando esticou o pescoço e leu o nome dactilografado na folha pregada na parede.

"Luís António Afonso", confirmou. "És tu."

"Não pode ser."

"Olha lá, tu não te chamas Luís António..."

"Tem de haver engano."

"... Afonso?"

"Isto é mau de mais!", exclamou. "Então entregaram-me ontem o diploma de veterinário e hoje venho aqui ao quartel e topo com o meu nome para ir para a tropa?" Abanou a cabeça, agastado.

"Não pode ser! Deve haver engano!"

Recusando-se a aceitar a evidência, Luís largou a lista e dirigiu-se ao guichet. Uma longa fila de jovens já se encontrava no local e o recém-chegado não teve alternativa que não fosse aguardar que os da frente se despachassem.

"Desculpe", disse, logo que chegou a sua vez. "Será que pode verificar a identidade de um nome que ali está afixado?"

O soldado do outro lado do vidro pediu-lhe o nome e foi confirmar nos calhamaços dos serviços de recrutamento. Localizou um volume, lambeu o indicador para ajudar a folhear, parou numa página, hesitou, virou para a seguinte, passou o dedo pelas linhas, encontrou a que procurava e ergueu os olhos.

"Você é de Alfândega da Fé?"

"Sou."

O soldado fechou o calhamaço, as dúvidas desfeitas.

"É você."

Luís ficou a mirá-lo, entre o horror e a estupefacção.

"Mas... mas... não pode ser. Será que pode verificar outra vez?"

"Está verificado."

"Mas deve haver engano!"

Com ar enfadado, o soldado encolheu os ombros e lançou o olhar para além de Luís.

"O seguinte!"

VI

Uma névoa acinzentada de óleo em vapor flutuava pela grande gare e o ar apresentava-se impregnado do cheiro ácido e sufocante do carvão queimado. Caminhando inclinado para a direita por causa do peso do malão que carregava com esforço, Luís acabara de chegar e sentia-se já desejoso de sair dali. A Estação de Santa Apolónia até podia ser muito bonita, resplandecente com os seus azulejos e ferros e vidros, mas o ar junto às linhas era absolutamente irrespirável.

"Onde é, Luís?", perguntou a tia Maria, apressada, cortando pela multidão que enchia o terminal.

O sobrinho apontou em frente. L ja aqui.

"Tens a certeza?"

Luís indicou o placar plantado junto à linha, o algarismo claramente visível.

"Linha dois. Está a ver?"

Constatando que se encontrava na plataforma correcta, a tia Maria consultou o bilhete enquanto caminhava ao longo do terminal.

"Temos de nos despachar, está quase a partir."

"Tenha calma, tia. O comboio só sai daqui a dez minutos."

"Valha-me Deus!", suspirou ela, tentando controlar a ansiedade. "Só fico descansada quando me vir lá dentro."

Localizaram a composição e, tomando balanço, Luís atirou o malão para o interior.

Depois ajudou a tia a subir e conduziu-a pelo corredor até ao seu compartimento. Uma vez lá dentro, ganhou coragem para a derradeira tarefa. Respirou fundo, pegou na mala e, o rosto rubro de esforço e bufando e urrando como uma máquina a vapor, ergueu-a e encaixou-a na bagageira localizada por cima dos lugares dos passageiros.

Quando terminou, deixou-se cair com abandono num assento. Era como se o seu corpo exangue se tivesse transformado num saco de batatas, esvaziando-se de uma assentada, inerte e desamparado.

"Puf!", soltou, a arquejar. A parte mais difícil estava concluída, constatou com alívio.

"Já está!"

A tia arrumou as suas coisas e aproximou-se da janela do compartimento, que se encontrava aberta.

"O cheirete lá fora é insuportável", constatou. Agarrou as pegas do vidro e puxou-as para baixo, fechando a janela com estrondo. "Chiça! Assim está melhor."

Sentindo as gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela face, Luís assentiu com a cabeça.

"Sem dúvida."

Fez-se silêncio, apenas pontuado pelo arfar do sobrinho ainda a recuperar o fôlego.

"Se bem compreendo, vais ficar mais tempo em Lisboa", disse a tia Maria. "E depois mandam-te para um sítio qualquer que ninguém sabe ainda onde é."

"A culpa não é minha, tia. Chamaram-me para a tropa e agora estou ao dispor deles. Não há nada a fazer."

"Que arreliação!", exclamou ela, dando um estalido com a língua. "Não podes ao menos pedir para ser colocado no regimento de Bragança?"

Luís encolheu os ombros num gesto de impotência.

"Para já, vou ter de ficar aqui em Lisboa. Mandaram-me frequentar o curso de oficiais milicianos e é isso que me espera nos tempos mais próximos. O resto ver-se-á depois."

A tia Maria considerou a informação.

"Já não é mau."

"O quê? Ficar em Lisboa?"

"Não. Tirares o curso de oficiais milicianos. Quer dizer que ao menos vais para oficial. Sempre é melhor do que mandarem-te para soldado raso, não é?"

"Ó tia, só cá faltava não me porem a oficial", riu-se ele. "Não se esqueça de que agora sou veterinário."