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A tia franziu o sobrolho.

"É isso que eu não percebo. Se és veterinário, para que te querem eles na tropa? Não és muito mais útil a exercer a tua profissão na vida civil? Ademais, quem não trabalha arrisca-se a ficar na dependura. Eles pagam alguns cunfres de jeito?"

"Claro que não."

"Então porque te estão a atrapalhar a vida, valha-me Deus? Parece que é por finca-ratunha!"

"O problema é que eu sou veterinário. Andam à cata de veterinários para a tropa."

"Ora essa! Não vejo porquê."

"Por causa dos animais. Quem é que arrasta as peças de artilharia? Como é que se transportam os oficiais? Quem é que carrega os abastecimentos de um lado para o outro?"

"Sei lá."

"São os cavalos, tia. Os cavalos e as mulas e o que mais para lá houver. É por isso que eles precisam de veterinários."

A tia balouçou afirmativamente a cabeça, acompanhando o raciocínio.

"Estou a ver", disse. "E os teus colegas? Também foram todos chamados para a tropa?"

"Alguns."

"Aquele teu amigo, o... o coiso, como é que ele se chama?"

"O Fernando?"

"Esse. Ele também foi?"

"Não."

A tia olhou para lá da janela do compartimento e observou um comboio a chegar à estação com grande ruído e espalhafato; a chaminé libertava uma grossa coluna de fumo negro, adensando a névoa parda que pairava na gare.

"Teve sorte, o diabo do rapaz."

Luís sorriu sem vontade.

"Não foi sorte, tia. Foi cunha."

A tia arregalou os olhos.

"Cunha? Queres dizer que foi um favor?"

"Claro."

"Tiraram-no assim da tropa, a nome de palhas?"

"Foi."

"E tu ficas-te em trinta? Põe-te guicho, rapaz! Porque não fazes tu o mesmo?"

O sobrinho encolheu os ombros, resignado.

"Porque não conheço ninguém a quem possa pedir o favor."

"Mas conhece o teu amigo. Ele é teu amigo, não é?"

"Acho que sim."

"E para que servem os amigos? A mesma pessoa que o safou também te pode safar!"

"Isso não funciona assim, tia."

"Então funciona como?"

"O Fernando é de uma família que pertence à... à situação."

"O que queres dizer com isso?"

"Eles são pelo regime."

"Ora, e tu também és."

A conversa complicava-se neste ponto. Luís ainda admitiu por momentos a hipótese de rebater a tia, mas logo reconsiderou. Não é que a tia Maria fosse uma simplória; não era. Mas o facto é que se tratava de uma mulher do campo e as subtilezas da política escapavam-lhe. Como explicar-lhe o que lhe era manifestamente incompreensível?

"Receio que as coisas não sejam assim tão simples, tia."

"Não vejo porquê", devolveu ela de imediato. "Basta o teu amigo falar com a pessoa a quem pediu o favor. Qual é a complicação?"

"Isso não pode ser feito assim às claras."

"Claro que não. Eles têm de falar à súchia, é evidente."

Luís coçou a cabeça, desconcertado. Teria de lhe explicar muitas coisas para que ela pudesse entender a dificuldade.

"Sabe, as..."

Um longo apito cortou o ar.

"Vamos partir!", exclamou ela, tremelicando de excitação no assento. "É agora."

O sobrinho quase suspirou de alívio. Salvo pelo apito! Desejoso de sair dali, ergueu-se num salto e beijou-lhe a mão.

"Com a sua licença, tia. É melhor ir-me imediatamente embora, senão já não consigo sair."

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"Está bem, mas promete-me que vais falar com o teu amigo..."

"Não adianta, tia. As coisas não funcionam assim."

"Então vais andar a perder tempo na tropa?"

"Tia! O comboio está a partir!"

Como que a confirmar estas palavras, a composição estremeceu e a locomotiva voltou a apitar.

"Arreda, moço", disse ela, fazendo gestos com as mãos para ele sair dali. "Andor!

Susquedono! Vai com Deus."

O comboio arrancou no exacto momento em que Luís saltou para a gare. O rapaz ficou ainda um longo instante a balouçar a mão, dizendo adeus à mão que dele se despedia de uma das janelas da composição; ele era um dos muitos que ficaram a saudar os que partiam, a mão dela era uma das muitas espetadas das janelas das composições a apartarem-se dos que deixavam para trás.

Quando a longa centopeia metálica por fim desapareceu na curva, Luís deu meia volta, pôs o chapéu na cabeça e foi à sua vida.

VII

A estação de Penafiel tinha o aspecto de apeadeiro campestre que caracterizava as estações das terriolas do interior, uma simpática casinha branca decorada a azulejos e rodeada pela verdura aprazível das árvores e arbustos. No ar flutuava o aroma fresco das vinhas já vindimadas e as conversas rumorejadas eram pontuadas pelo melodioso trilar em dueto dos rouxinóis. As folhas de algumas árvores avermelhavam, as cores vivas outonais realçadas pelo sol esplendoroso que aquecia a estação e refulgia no tapete de pétalas que adornava os canteiros.

O quadro bucólico de terra de província foi quebrado por um rumor distante que logo se transformou num brutal ronco estrepitoso; era o comboio que irrompia com grande aparato na estação. Parecia uma besta negra em fúria, fumegante e ruidosa. A composição imobilizou-se com um guincho e um estremeção, como se o animal ofegasse de raiva, e das portas começaram a jorrar viajantes que desciam os degraus metálicos com cautelosa lentidão.

Entre os recém-chegados viam-se alguns militares. A maioria caminhava com decisão, como se estivesse bem familiarizada com aquelas paragens; mas havia um que parecia inseguro, quase hesitante, os olhos a dançarem com incerteza pela estação. Desconhecendo por completo aquele lugar, o forasteiro optou pelo comportamento mais lógico e seguiu a corrente dos outros passageiros até chegar à porta da estação.

Um vulto verde-azeitona cortou-lhe o caminho já perto da saída.

"Alferes Luís?"

"Sou eu."

O homem fez continência.

"Boa tarde, meu alferes", saudou. "Sou a ordenança do capitão Branco." Inclinou-se na direcção da mala que o recém-chegado trazia na mão. "Dá-me licença?"

Aliviado por ter alguém a recebê-lo naquela terra desconhecida, Luís entregou a mala à ordenança e seguiu-a para fora da estação, onde os aguardava um automóvel negro. O soldado levantou a tampa da bagageira para depositar a mala e, nesse instante, a porta traseira do carro abriu-se e saiu de lá um oficial. O alferes olhou para os galões e apercebeu-se de que se tratava de um superior hierárquico, um capitão. Num gesto quase automático, interiorizado ao longo dos meses que passara na Escola Preparatória de Oficiais Milicianos, imobilizou-se e fez continência.

"Meu capitão."

O oficial devolveu a continência.

"Bem-vindo a Penafiel", disse. "Fez boa viagem?"

"Muito boa, meu capitão."

O capitão sorriu com bonomia. Era um homem de estatura média e porte erecto, a transbordar de dignidade.

"Oiça, vamo-nos deixar de formalismos, está bem? Eu sou o capitão Mário Branco e o senhor vai trabalhar sob as minhas ordens. Estou perfeitamente consciente de que o nosso alferes não é um militar de carreira, mas um médico veterinário, pelo que será tratado como tal."

"Sim, meu capitão."

"Aliás, para dizer a verdade nem sei se o trate por alferes ou por doutor. Como prefere?"

"É melhor alferes, meu capitão. Sempre estamos no exército, não é?"

O capitão Branco assentiu.

"Muito bem, fica alferes", disse. Fez um gesto na direcção do interior do automóvel. "Entre, faça o favor."

Constatando que a ordenança já guardara a mala e se dirigia para o lugar do condutor, Luís acomodou-se no assento traseiro.

"Agradeço-lhe a gentileza de me ter vindo receber à estação."