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"Não tem de quê", devolveu o capitão, instalando-se ao lado do alferes veterinário. "Não é costume vir buscar um oficial miliciano, mas, tratando-se de um médico veterinário, achei que deveria ter este gesto. O nosso alferes nunca esteve por cá, pois não?"

"Esta é a primeira vez, meu capitão."

"Calculei. Como a viagem é cansativa, pensei que seria simpático vir acolhê-lo."

O automóvel arrancou e começou a escalar a colina em ritmo de passeio, afagando a frescura campestre. Para lá da estrada estendia-se uma vegetação opulenta em cores, o verde dos milheirais a misturar-se na encosta com o esmeralda dos linhares, enquanto a prata reluzente dos regatos gorgulhantes deslizava por entre o ouro das eiras; aqui e ali aparecia uma herdade em cal ou um murete em granito, as heras entrelaçadas nas paredes como aranhas de verdura, para logo voltar a vegetação selvagem dos bosques.

Mas, uns dois quilómetros mais acima, as casas começaram a surgir apinhadas e uma tabuleta indicou Penafiel.

"Estamos a chegar", observou Luís, os olhos colados aos edifícios que iam aparecendo com mais frequência, embora ainda rodeados pela verdura dos quintais cultivados. "A cidade é grande?"

"Tem uns seis mil habitantes, não é muito. Mas olhe que é terra antiga."

"Ai sim?"

"Pois claro. Vem do século xn. Até temos aqui o túmulo do Egas Moniz."

"O aio da corda ao pescoço?"

"Sim, aquele que preferia morrer a faltar à palavra dada." Sorriu. "Como vê, Penafiel é terra de gente fiel. Fiel à sua palavra, fiel à sua pena. Penafiel."

O recém-chegado desviou a atenção das casas para o capitão e devolveu-lhe o sorriso.

Não sabia porquê, mas aquele oficial era-lhe simpático.

"E o regimento?", quis saber. "Que tal é?"

"Infantaria 6 é o orgulho de Portugal, meu caro. Tem história! Foi criado no Porto ainda no século xm e combateu sob as ordens de Wellington contra Napoleão, desde o Buçaco até Toulouse. Estivemos em todas as batalhas. Além do mais, foi este regimento que iniciou a revolução liberal e uma das duas unidades que fizeram a defesa da Carta Constitucional quando ela foi proclamada em Coimbra."

"Muito passado, já vi", assentiu Luís, com um esgar impressionado. "E na Grande Guerra, como foi?"

"Mandámos um batalhão para a Flandres."

"O meu capitão também lá esteve?"

"Não, na altura eu pertencia a um outro regimento e fui enviado para Moçambique."

"Sorte, hem?"

"Qual quê! Aquilo foi muito complicado. Os Alemães vieram do Tanganhica e estavam a dar-nos uma tareia. Quando chegou a vez de a minha unidade partir para os enfrentar, pensei que não regressaria vivo. Até escrevi uma carta de despedida à minha família, veja lá. Só que foi exactamente nessa altura que veio a notícia de que a guerra tinha acabado. Ufa, nem imagina a festa que foi!"

Luís sorriu.

"Suponho que seja essa a vantagem de um médico veterinário na tropa: nunca terei de combater", disse. Pigarreou. "Para dizer a verdade, nem sei bem o que terei para fazer. O regimento tem muitas exigências para as minhas funções?"

"Oh, o normal."

"O que é o normal?"

"O nosso alferes teve alguma preparação especial para as necessidades do exército?"

"Sim, claro. Tirei o primeiro grau da Escola Preparatória de Oficiais Milicianos e trabalhei no Serviço Veterinário Militar e no Hospital Militar Veterinário Principal."

"Lidava com cavalos?"

"Meu capitão, eu prestei provas de equitação no Hospital Militar!", retorquiu o alferes, quase ofendido.

"Então vai estar aqui à vontade. Temos o Serviço Militar Veterinário, uma maneira pomposa de dizer que o nosso alferes vai tratar dos cavalos e dos burros."

"Só isso?"

"Bom, terá também a seu cargo a inspecção sanitária de tudo o que diz respeito à agropecuária do quartel, claro. No

fim de contas, temos de garantir a qualidade dos produtos que consumimos na messe, não se vá dar o caso de haver alimentos que não estejam em condições." Abriu as mãos e exibiu as palmas. "E é tudo."

"Não parece muito."

O capitão fez com o polegar um sinal para o exterior, por onde deslizavam agora as fachadas setecentistas do centro.

"Espera-o uma vida tranquila, vai ver."

O quartel era um paralelepípedo gigante de dois pisos que enchia um quarteirão inteiro mesmo diante da principal avenida da cidade. Apesar de se situarem em pleno centro, as instalações militares dispunham de amplo espaço em frente e num dos lados, o que se afigurava ideal para os exercícios e formaturas.

O capitão Branco conduziu o recém-chegado pelo edifício e levou-o ao gabinete do comandante da força militar ali instalada, o Regimento de Infantaria 6. Subiram ao primeiro andar, bateram à porta da antecâmara e uma voz mandou-os entrar. Sentado a uma secretária estava o oficial de operações, um alferes a quem Branco apresentou Luís.

"Bem-vindo!", saudou o alferes Boavida. "Já estava na altura de termos Veterinário, que diabo!"

"Não me diga que sou o único do quartel..."

"Ai digo, digo. O lugar vagou há dois meses."

"O que aconteceu ao anterior?"

"Era um miliciano, como o nosso alferes. Terminou o serviço militar e foi à sua vida."

Com alguma impaciência, Mário Branco indicou a porta do gabinete do comandante do regimento.

"Acha que podemos entrar?"

O oficial de operações esfregou as mãos num tique nervoso.

"Querem ver o coronel Silvério?"

"Sim", confirmou o capitão. "O nosso alferes veterinário apresenta-se hoje ao serviço e parece-me curdial que venha cumprimentar o nosso comandante."

"Pois é, mas o nosso coronel saiu para o almoço."

O capitão consultou o relógio e franziu o sobrolho. Eram já quatro e meia da tarde.

"Quando volta ele?"

"Não sei." O oficial de operações encolheu os ombros. "Já sabe como o nosso coronel é..."

Mário Branco sabia. Na sua experiência, se o comandante não tinha regressado até àquela hora, isso significava que já não regressaria nesse dia; o coronel era um pançudo de muito alimento e pouco trabalho, pelo que tal atraso significava provavelmente que estaria a digerir numa sesta o excesso de verde tinto que consumira à refeição.

"Como faz o nosso alferes para se apresentar ao serviço?"

O alferes Boavida encarou Luís.

"Tem aí os papéis?"

O recém-chegado tirou uns documentos do bolso do casaco e estendeu-os.

"Estão aqui."

"Deixe-os comigo", disse o oficial de operações, pegando neles. "O nosso coronel assinará amanhã."

Despediram-se ambos do alferes Boavida e saíram para o corredor. Quando a porta se fechou, o capitão fitou o rosto cansado de Luís.

"Oiça lá, não está com fome?"

Deram um salto à messe e encontraram-na fechada. Um cozinheiro ainda se ofereceu para fritar uma costeleta de Porco, mas o capitão Branco rejeitou a ideia e mandou chamarem-lhe a ordenança.

"Vamos ao Aires", anunciou enquanto aguardavam os dois à porta do quartel.

"É longe?"

O capitão apontou para a direita.

"É já ali", disse. "Está a ver aquele edifício?"

"Sim."

"Atrás dele encontra-se a Pensão Morais. O Aires fica em baixo."

Luís fitou o seu superior hierárquico, surpreendido.

"Mas então para que precisamos da ordenança?"

"Para lhe levar a mala."

"A mala? Não é melhor ela ser enviada para os meus aposentos?"

"Justamente. A Pensão Morais vai ser a sua morada nos próximos tempos."

A informação espantou-o ainda mais.

"Não vou instalar-me no quartel?"

"Claro que sim. Mas o seu quarto está ocupado e só ficará livre daqui a uma semana. No entretanto terá de se alojar na Pensão Morais."