Quando a ordenança apareceu, atravessaram a avenida em direcção ao Calvário e meteram pela Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Passaram diante do Tribunal Judicial e entraram na pensão. Luís registou-se no balcão e a ordenança ajudou-o a levar a mala ao quarto.
Já instalado, o alferes veterinário desceu e o capitão conduziu-o ao Aires, o restaurante junto à pensão. Encontraram-no deserto, o que era natural considerando o adiantado da hora, e encostaram-se ao lado da janela. Consultaram a ementa, mas a empregada disse-lhes que já só havia o prato do dia.
"Venha daí a feijoada", exclamou Luís, que não comia nada desde essa manhã.
A empregada afastou-se, deixando-os a olharem um para o outro, meio sem jeito.
"O alferes é casado?", perguntou o capitão, mais para fazer conversa do que por curiosidade.
"Não. Nem tenciono."
A ênfase peremptória da resposta chocou o anfitrião.
"Não diga isso."
"A sério."
"Mas porquê? O que tem o nosso alferes contra o casamento?"
"Não tenho nada. Mas não quero casar."
O capitão analisou Luís com olhos perscrutadores.
"Cheira-me que anda por aí desgosto de amor..."
"Digamos que tenho os meus motivos", rematou o alferes veterinário. "E o meu capitão? É
casado?"
A pergunta constituiu uma evidente tentativa para desviar a conversa, coisa que o superior hierárquico instantaneamente percebeu. No entanto, como homem sensível e bom diplomata, concluiu que não deveria insistir num assunto que Luís manifestamente evitava e aceitou a mudança de direcção implícita na pergunta do seu interlocutor.
"Sim, sou casado."
"Tem filhos?"
"Três."
"Caramba, isso já é uma ninhada!"
O capitão sorriu.
"É bom ser pai."
"São rapazes?"
"O mais velho é rapaz. As outras são meninas."
Prosseguiram a cavaqueira em tom morno, as palavras rolando ao ritmo mole da tarde. A feijoada apareceu requentada e servida com um arroz amarelado e seco, mas vinha suculenta e rica. Meio entorpecido com o verde branco com que regou o prato, Luís foi dividindo a atenção entre a feijoada, que engolia com mal disfarçada glutonaria, o capitão, que o ia esclarecendo sobre os diversos aspectos da vida no quartel, e a janela, minúsculo ecrã tridimensional por onde lhe entravam as cores e os cheiros da cidade.
Lá fora a vida arrastava-se com indolência. Passava uma carroça, um boi sonolento largava uma bosta no empedrado, um camponês carregava um cesto repleto de uvas verde--esmeralda. A luz da tarde mudava imperceptivelmente com o adormecer gradual do sol, adquirindo hipnóticas tonalidades azuladas. Por vezes pela janela irrompia o clip-clap-clip-dap metálico dos cascos dos cavalos; pareciam batuques a injectar energia no ar, mas logo o mugir mandrião de uma vaca ou o farfalhar lento das árvores marcavam o compasso melódico da tarde preguiçosa.
Mais por gulodice do que por fome, Luís arrancou um naco de pão e passou-o pelo prato já vazio, empapando o miolo com o delicioso molho que restava. O seu interlocutor embrenhava-se numa exposição sobre as ligações de camioneta para o Porto; parecia que havia várias por dia nos dois sentidos e as viagens duravam umas duas horas. Enquanto ouvia o capitão discorrer sobre os horários dessas ligações, meteu o naco de pão na boca e olhou distraidamente pela janela.
Foi então que a viu.
O cabelo pareceu-lhe um pouco diferente, mais escuro, mas as linhas delicadas do rosto e aquele ligeiro ar a May McAvoy eram inconfundíveis. Sentiu um baque no peito e ficou petrificado.
"Então?", alarmou-se o capitão, vendo-lhe a fisionomia totalmente alterada. "Sente-se bem?"
Luís ergueu-se de rompante. Seria possível? Estaria com visões? Era mesmo ela?
Precisava de tirar aquilo a limpo.
"Com licença!", exclamou. "Já venho!"
Saiu do lugar e deu um salto para a porta do restaurante. A rapariga já passara, mas o veterinário ficou um longo instante a vê-la de costas a afastar-se, o corpo a deslizar pelo passeio, o perfume a esvoaçar pelo caminho.
"Amélia."
VIII
Aquela imagem e aquele baque perseguiram-no o resto do dia. Vira-lhe o rosto fugazmente da janela do restaurante, sentira-lhe a fragrância, contemplara-a a afastar-se passeio fora. Parecera-lhe Amélia, mas não podia garantir com toda a segurança que fosse mesmo ela; é preciso não esquecer que já se tinham passado alguns anos. Dava-lhe a impressão de que o cabelo era ligeiramente mais escuro e notara algumas diferenças no corpo, em particular na forma como caminhava; o menear das ancas era algo diferente. Tirando isso, porém, iria jurar que se tratava mesmo dela.
Ficou sem saber o que fazer. Ansiando por uma confirmação, ainda pensou em interrogar o capitão sobre a identidade da moça; afinal estavam em terra pequena e todos se conheciam. Mas conteve-se. Não só o capitão Branco não a vira passar, como Luís achou que se arriscava a fazer figura de tonto. O que iria pensar dele o superior hierárquico? Que o seu veterinário queria conhecer a primeira rapariga com quem
se cruzara em Penafiel? Não, concluiu. Teria de descobrir por si mesmo. E discretamente.
Apesar da noite mal dormida, ou talvez por causa dela, compareceu manhã bem cedo no quartel.
O capitão Mário Branco, que incrivelmente tinha sido ainda mais madrugador, recebeu-o com café e entreteve-o até à hora em que o comandante deu entrada no edifício, eram já quase nove da manhã.
Luís foi então levado ao gabinete do responsável pelo regimento e apresentou enfim os cumprimentos ao coronel Silvério.
"Você é que é o veterinário, hem?"
"Sim, meu comandante."
"Já não era sem tempo!", exclamou. "Tenho para cá muitos animais a precisarem de tratamento!"
Soltou uma gargalhada, muito satisfeito com o duplo sentido da sua tirada, e os dois subordinados sorriram por cortesia. A conversa limitou-se a palavras de circunstância, erráticas e vazias, tão fúteis que depressa o capitão o arrancou dali e o levou a conhecer os restantes oficiais.
Concluídas as apresentações, o capitão serviu de cicerone numa visita ao quartel, começando pelas camaratas e passando pelo paiol. Para último deixou os espaços onde Luís iria exercer mais directamente as suas funções. Foram ambos à enfermaria veterinária, onde o recém-chegado conheceu os enfermeiros hípicos que iria chefiar, e deram um salto à oficina de siderotécnica.
"Nunca percebi este nome", queixou-se Luís. "Siderotécnica."
"São os ferradores", explicou o capitão Branco.
O veterinário sorriu.
"Eu sei que são os ferradores. O que não percebo é por que razão chamam a isto oficina de siderotécnica e não oficina de ferragem!"
O superior hierárquico riu-se.
"Dá um ar mais modernaço, suponho eu."
A derradeira etapa foram os anexos, que visitaram já próximo do meio-dia. Ao saírem para o pátio, a primeira coisa que Luís notou foi o forte cheiro a estrume, um odor reminiscente da quinta da família, nos Cerejais. O fedor indiciava a presença de animais nas imediações, o que foi confirmado por um súbito relinchar.
"As cavalariças", anunciou Mário Branco ao chegar aos estábulos. "Está aqui o essencial do seu trabalho."
Luís aproximou-se e espreitou para o interior. Enormes vultos permaneciam plantados na sombra, rodeados de palha; eram os cavalos do regimento. O veterinário analisou-lhes o porte encorpado, quase gordo, e identificou a raça.
"São bolonheses." Mirou o capitão com uma expressão interrogativa. "Vocês montam estes cavalos?"