"Estes, não. Usamo-los para puxar a artilharia."
"Então quais são as montadas?"
O capitão indicou os estábulos ao lado.
"Estão ali."
Adiantaram-se uns metros e espreitaram para os estábulos vizinhos. Ao ver os animais ali recolhidos, Luís assentiu com a cabeça, numa expressão aprovadora; eram mais delgados que os anteriores.
"Célticos", constatou.
Entrou na cavalariça e acercou-se de um deles, um cavalo castanho e robusto. O animal remexeu-se, inquieto com a presença do desconhecido, e relinchou ruidosamente. O veterinário hesitou, nervoso; não estava muito familiarizado com aqueles equídeos. Em Trás-os-Montes lidara sobretudo com mulas e o que sabia sobre cavalos era o que aprendera em Lisboa pelos livros da Escola de Medicina Veterinária ou nos exercícios de equitação do Hospital Militar Veterinário Principal.
"E o pónei", disse o capitão, apoiando os cotovelos na cancela de acesso ao estábulo.
"O quê?"
"Essa égua está nervosa por causa do pónei."
"Qual pónei?"
O oficial indicou uma esquina da cavalariça.
"Aquele ali. É o filho dela. A Diana não gosta de ver estranhos a deambularem por aqui, por causa do pónei." Sorriu. "Sabe como é, coisas de mãe protectora."
O veterinário apercebeu-se de um vulto mais pequeno, entre a égua e o canto mais afastado do estábulo.
"Ah, estou a ver!""
Luís mostrava-se determinado a não dar parte de fraco. Procurando comportar-se como um entendido, encostou-se à égua e acariciou-lhe o topete. Depois murmurou-lhe palavras suaves ao ouvido.
"Linda menina, linda menina." As palavras saíam-lhe como sedativos, suaves e tranquilizadoras.
"Pronto, está tudo bem. Linda menina."
Diana arfou e bateu com as patas traseiras no solo, mas, depois de novas carícias, pareceu ficar mais quieta. Vendo-a acalmar, Luís sorriu. Podia não estar muito familiarizado com cavalos, mas tinha um jeito muito especial para lidar com animais.
Conquistada a confiança da égua, levantou-lhe o lábio superior e analisou-lhe os incisivos.
"Então?", perguntou o capitão.
"Parece-me saudável."
Deslizou depois para o canto do estábulo e apreciou o pónei negro que a égua protegia. Era um cavalinho altivo e de olhar muito vivo, o corpo alto e a postura elegante.
"Belo animal, hem?"
Luís ficou a contemplá-lo, estranhando-lhe a raça. O corpo não conferia com as linhas da mãe; parecia-lhe ainda mais esbelto e ligeiro.
"É filho dela?"
"Sim."
"Mas não parece céltico."
"Tem toda a razão. O pai é o cavalo de um major que aqui esteve no ano passado. Um puro-sangue árabe."
De mãos à ilharga, o veterinário apreciou o pónei com outros olhos.
"É um bonito cavalo, sem dúvida", disse. "Acho que o vou treinar." Inclinou-se sobre o animal e acariciou-lhe o tronco, sentindo o pêlo sedoso deslizar-lhe pelos dedos. "Como se chama ele?"
"Ainda não tem nome."
"Não lhe parece que está na altura de ser baptizado?"
O capitão aproximou-se.
"Tem alguma coisa em mente?"
O pónei rinchou, como se percebesse que era ele o centro da conversa, e Luís pousou-lhe a mão no topete, tentando acalmá-lo.
"Relâmpago."
Apesar de o quartel estar equipado com uma messe, Luís improvisou uma desculpa relacionada com inspecções ao mercado, alegando que ia procurar os bovinos mais saudáveis para a cozinha do quartel, e passou a almoçar no Aires. Teve o cuidado de reservar a mesa junto à janela e dali ficou a vigiar a rua, atento a todos os transeuntes. Se ela passara uma vez por ali, raciocinou, decerto passaria de novo. Era uma questão de ser paciente e esperar.
Esperou um, dois, três dias. Como o quartel era quase ao lado, um major chegou a dar com ele por ali e lançou-lhe um gracejo, perguntando-lhe se era assim que inspeccionava o mercado.
Ao quarto dia, porém, a sorte sorriu-lhe. O almoço nessa ocasião era iscas com arroz de tomate, que depenicou sempre com os olhos pregados na janela, como se tornara seu costume. De repente, viu-a dobrar a esquina e meter-se pelo passeio, aproximando-se da porta do restaurante. Luís ergueu-se num salto e, o coração a bater com força, cravou nela os olhos intensos. Era a hora da verdade, o momento em que perceberia se ela era ou não Amélia.
A rapariga vinha com um vestido cor-de-rosa e transportava uma cesta de vime;dava a impressão de que ia à mercearia. A medida que se acercava, as suas feições foram-se tornando mais distintas. A expressão melancólica que lhe bailava nos olhos era indiscutivelmente de Amélia; o corpo, apesar do caminhar diferente, tinha as mesmas formas; até os lábios apresentavam a carnalidade sensual da antiga namorada.
Mas não.
Não era Amélia. Com decepção, mas também com um certo alívio, Luís constatou que se tratava de uma rapariga diferente. Apercebeu-se disso quando ela passou diante da janela, os olhos garços perdidos em pensamentos. O nariz era diferente, o cabelo também. Luís deixou-se cair na cadeira, quase ofegante. Não era Amélia.
A semelhança revelava-se espantosa, sem dúvida. Era também verdade que, desde a última vez que vira a namorada, julgava encontrá-la em cada rapariga que passava diante dele. Um sorriso, um olhar, por vezes um mero trejeito, qualquer coisa servia para a associar a Amélia. Era como se a visse por toda a parte. Mas desta vez, acreditava, havia algo de diferente e. Não era ele que tentava à viva força descortinar Amélia na primeira rapariga que lhe aparecia à frente; era aquela rapariga que possuía de facto inegáveis parecenças com Amélia.
A constatação de que não se tratava da antiga namorada deixou-o por instantes sem reacção. Se não era Amélia, o caso ficava arrumado. Mas, tal como a pequena traça que começa por corroer um canto da camisa e depressa faz o buraco alastrar a todo o tecido, também a inquietação lhe nasceu num minúsculo ponto do espírito e logo se espalhou por todo o corpo. Era verdade que a rapariga não era Amélia, pensou, mas também era verdade que, mesmo tendo-a visto só de fugida, aquela semelhança fazia com que ela não lhe fosse indiferente. Podia ser pela beleza, podia ser pela graça, podia ser por todos os pormenores de parecença com a sua paixão do liceu. Sim, que fosse pela parecença! E então? Que mal havia nisso? O facto é que a rapariga o deixara perturbado.
Num movimento impetuoso, ergueu-se, largou uma nota na mesa e saiu do Aires quase a correr.
Viu-a ainda a entrar no Tribunal Judicial e desaparecer para lá da porta. Sentiu uma necessidade absoluta de a ver de novo, de saber o que encontraria de Amélia naquela desconhecida. Foi por isso postar-se do outro lado da rua, vigiando a saída como um cão de guarda.
Ao fim de alguns minutos, porém, começou a sentir-se ridículo. O que pensariam as pessoas ao vê-lo ali plantado? Que comentários não se fariam na messe se algum camarada de armas deparasse com ele naquela pose? Diriam que o alferes veterinário estava a inspeccionar o gado que saía do tribunal?
Tirou uns documentos militares do bolso e pôs-se a consultá-los, fingindo-se absorvido em algo de grande relevância para as suas funções. Quem o visse diria que parara ali porque tinham acabado de lhe entregar coisas de incomensurável importância, talvez relatórios sanitários sobre os bovinos da região, quem sabe se não seriam notícias de uma grave epidemia animal?
A rapariga reapareceu dez minutos mais tarde. Retomou o caminho por onde tinha vindo, passando de novo diante da Pensão Morais e do Restaurante Aires, e dirigiu-se para a avenida principal. Luís enterrou o boné militar na cabeça, de modo a ocultar melhor os olhos, e seguiu-a à distância. Viu-a cruzar a Avenida Sacadura Cabral e meter por uma perpendicular, entrando no mercado municipal. O veterinário manteve-se no seu encalço; aquele sítio era perfeito para a vigiar.