"Olá!", cumprimentou-a Luís, abrindo um sorriso embaraçado logo que foi avistado. "Será que me pode ajudar?"
"E seu?", perguntou ela, apontando para o livro escarrapachado na rua.
"Estava a ler e... caiu-me. Sou mesmo desastrado."
"Quer que o apanhe?"
"Se fizer o favor."
A rapariga pousou o cesto no passeio, olhou para os dois lados da rua e foi apanhar o volume.
Com o livro na mão, ergueu os olhos para Luís, que permanecia à janela.
"E agora? O que faço?"
Luís ergueu a palma da mão, pedindo-lhe que aguardasse.
"Espere um pouco, não saia daí. Já vou ter consigo."
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, o alferes veterinário sumiu-se da janela.
Enquanto esperava, a rapariga encostou-se a uma árvore, no passeio, e pôs-se a estudar o romance. Foi nessa pose que Luís deu com ela quando apareceu na rua. Vinha janota na sua farda militar e sorriu ao aproximar-se da vizinha.
"Peço imensa desculpa pelo incómodo", começou por dizer. "Estava à janela a ler e o livro caiu-me."
A rapariga estendeu-lhe o volume e Luís olhou-a nos olhos. Era realmente parecida com Amélia, confirmou. Vendo-a assim de perto, a uns meros dois palmos de distância, reparou que as diferenças entre ela e a antiga namorada eram marcadas, mas afigurava-se-lhe inegável que partilhavam as duas o mesmo género de beleza.
"Está a gostar?", perguntou ela.
"De quê? De a conhecer?"
A rapariga enrubesceu e riu-se.
"Não, do livro."
"Ah, sim. É muito bom." Olhou de relance para o romance que ela lhe devolvera. "Já alguma vez leu O Crime do Padre Amaro}'''
"Claro. Quem não leu?"
"Era um maroto este Amaro, hem?"
Ela voltou a rir-se.
"Maroto é pouco."
Luís estendeu-lhe a mão.
"Eu chamo-me Amaro. Como está?"
"A sério? Chama-se mesmo Amaro?"
Ele piscou-lhe o olho.
"Não, sou eu a brincar. O meu nome é Luís." Indicou com o polegar a fachada traseira do quartel, do outro lado da rua. "Sou alferes veterinário aqui no regimento."
"Olá, eu sou a Joana."
"Joaninha dos olhos verdes, verdes?"
"Oh, não brinque."
"Desculpe, não resisti. Vive por aqui?"
Joana apontou para a vivenda branca.
"Ali mesmo."
"Ah, que engraçado! Somos vizinhos e nunca a vi!"
"Tem piada que eu também nunca o vi a si. O senhor é de cá?"
"Não", disse ele. "Vim de Lisboa. Cheguei há algumas semanas."
A rapariga assentiu com a cabeça.
"Então seja bem-vindo a Penafiel", disse, estendendo-lhe a mão. "Tive muito gosto em conhecê-
lo. Boa tarde."
"Oh! Já se vai embora?"
Joana pegou na cesta, que estava pousada junto à árvore, e começou a caminhar.
"Tenho de ir." Acenou-lhe. "Adeus!"
X
O contacto estava estabelecido. Como um predador furtivo que ronda a presa inocente, sabia que só lhe restava fechar o cerco e desferir o ataque final.
Já tinha jogado aquele jogo inúmeras vezes em Lisboa, mas agora ele era um tudo-nada mais excitante, não só porque a sedução decorria numa terra de província, onde o contacto com o belo sexo se revelava mais difícil, e consequentemente mais apetecível e apimentado, como porque, de entre todas as raparigas que conhecera desde que saíra de Bragança, Joana era de longe a mais interessante, sem dúvida porque, devido à semelhança física, trazia com ela o perfume da memória de Amélia.
Não largou a janela do quarto nos dias que se seguiram. Quando a rapariga apareceu no quintal pela primeira vez depois do encontro, reparou de esguelha que ela lhe atirou um olhar furtivo logo que saiu de casa. Luís fingiu-se embrenhado na leitura e comportou-se como se não se tivesse dado conta da sua presença.
Mas, no dia seguinte, no preciso momento em que Joana assomou ao portão para sair à rua, largou o romance e lançou-lhe um adeus e um sorriso.
"Olá! Está tudo bem?"
A rapariga correspondeu com uma saudação calorosa.
"Bom dia! Ainda a ler o padre Amaro?"
"Muito interessante", disse ele, acenando com o livro. "Este Amaro é do arco-da-velha! Já não se fazem padres assim!"
Riram-se os dois e ela abanou a mão em despedida, iniciando o percurso do seu passeio do costume.
"Já não escapas", murmurou Luís, vendo-a tão consciente da sua presença. "És minha."
Assim continuaram por vários dias, trocando acenos e sorrisos à distância. O galanteador da janela foi alimentando desse modo aquela sedução platónica, quase à maneira das novelas, enleando a rapariga com uma subtileza feita de experiência, como um caçador batido a aguardar o momento decisivo. Avaliando dia a dia o modo como ela reagia à sua presença já habitual na janela, ultimou meticulosamente a táctica e marcou a estocada final para meio da semana seguinte.
Era uma quarta-feira soalheira e fria, um daqueles dias em que a brisa desce pelo vale do Sousa e congela a cidade. O capitão Branco tinha-se ausentado para Lisboa, onde ficaria um mês a exercer funções na Escola do Exército, deixando o veterinário mais à vontade com os seus projectos amorosos.
Logo que Joana apareceu no quintal, Luís fez-lhe sinal de que se preparasse e lançou para o vazio um objecto pontiagudo branco. A rapariga ficou surpreendida primeiro e intrigada depois, os olhos presos naquela forma aguçada que zigueziava
pelo ar, como uma folha seca, e que acabou por se estatelar na rua, mesmo diante da vivenda.
Após lançar uma mirada interrogativa para a janela de onde o militar a espreitava, saiu à rua e recolheu o objecto. Era um aviãozinho de papel. Voltou a olhar para Luís, que com um gesto lhe indicou que teria de desdobrar o avião. Joana obedeceu e deparou-se com uma mensagem inesperada.
Mil anos de tormento me parece Cada hora que sem ti e sem esperança Vivo de poder mais tornar a ver-te. Sustenta-me esta vida tua lembrança; A vida sobre tudo me entristece; A vida antes perdera, que perder-te.
Joana leu o poema três vezes; leu-o consecutivamente, acabava uma vez e voltava ao princípio.
Depois de tudo ler e de se certificar de que os versos diziam o que ela pensava que diziam, ergueu os olhos brilhantes para a janela e encostou a folha ao peito, como se o gesto fosse outro poema, como se aquelas palavras lhe tivessem cantado ao coração.
Inclinado sobre a janela, Luís lançou-lhe um beijo. Afogueada de emoções, ela corou, baixou a cabeça e correu para casa. Vendo-a desaparecer tão precipitadamente, o alferes veterinário sorriu, fechou a janela e pousou a mão no velho livro de receitas amorosas que o acompanhava desde aquele Natal nos Cerejais, o título Lírica e o nome Camões estampados a ouro na capa.
"Ah, grande zarolho!", exclamou. "Nunca falhas!"
Já em Lisboa tinha Luís afogado em mulheres o seu desgosto de amor e por várias vezes perguntou a si mesmo se não
estaria agora a fazer a mesma coisa. Precisava de ultrapassar o trauma da separação de Amélia e era sempre à custa de outras que o conseguia. Sabia, contudo, que as suas namoradas não passavam de respostas transitórias. Cada uma servia para lhe alimentar a efémera ilusão de que vencia o desgosto, mas depressa o sentimento de perda regressava, como uma ferida mal sarada, e era esse o sinal de que tinha de mudar para outra. Estaria Joana destinada a ser mais uma na sua infindável lista?
Procurou a solução nos intervalos das suas obrigações de veterinário do regimento, quando se esgueirava do quartel e ia ter com a nova amiga. Aproveitava as saídas diárias de Joana para a acompanhar no passeio, que se foi tornando gradualmente mais longo e apimentado. Luís relatou-lhe a sua vida em Lisboa e as aventuras na faculdade, mas teve sempre o cuidado de omitir a infância em Trás-os-Montes; queria dar a impressão de homem da cidade, vivido e conhecedor das coisas do mundo, e achava que as suas raízes transmontanas não se coadunavam com essa imagem de sofisticação urbana.