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Luís torceu a boca.

"Eu pensei que você também fosse minha amiga..."

Amélia calou-se, sem resposta, e fixou de novo a atenção no livro. Assim sentada, serena e inatingível, dava a impressão de ser o tipo de rapariga que apenas se vislumbra num palacete distante, o perfil recortado pela neblina, os cabelos incendiados por halos de luz crepuscular.

Luís sentiu que tinha de forçar uma decisão. O burburinho dos últimos dias entre as raparigas e o quase distanciamento de Amélia machucavam-lhe o orgulho e enchiam-no de ansiedade. Passava tardes inteiras a considerar se lhe era ou não indiferente e tinha de pôr fim a essa angústia permanente. Precisava a todo o custo de clarificar a situação e aquela era a oportunidade para o fazer. Tinha ou não hipóteses com ela? Valeria a pena suspirar sempre que a via? Sentia o coração aos pulos no peito e a respiração oprimida, receando a resposta à sua tormentosa dúvida, apavorado com a incerteza, mas mesmo assim não deixou de formular a pergunta.

"Quer que eu me vá embora?"

A rapariga ficou um instante calada, como se quisesse desaparecer nas páginas do livro que fitava mas não lia. Encolheu-se toda e sussurrou num fio de voz quase inaudíveclass="underline"

"Pode ficar."

Foi como se uma explosão de luz e cor enchessem a biblioteca. Luís sentiu um peso desprender-se de si e tornar-se leve como as páginas do livro aberto sobre a mesa. A rapariga mais bonita do liceu aceitava a sua companhia, deixava-o ficar ali com ela. O dia pareceu-lhe mais belo, a vida mais intensa, o ar mais puro.

Inebriado com a resposta, abriu o rosto num imenso sorriso e respirou fundo.

"Sabe quem é que você me faz lembrar?"

Amélia ergueu os olhos interrogativamente para ele.

"Quem?"

"A May McAvoy."

Ela franziu o sobrolho, como se nada daquilo fizesse sentido.

"A mãe e a maca da avó?"

Luís reprimiu um sorriso e arregalou os olhos, fingindo-se escandalizado.

"McAvoy. A May McAvoy."

"Não conheço."

"Não viu o Ben-Hur?"

"Claro que vi."

"A May McAvoy é a actriz principal."

Os olhos de Amélia iluminaram-se com a comparação.

"Ah, já sei. Aquela do..." Corou. "É... é bonita."

Luís riu-se.

"Bonita? É lindíssima!" Inclinou a cabeça, como se a avaliasse. "Acho que é esse seu ar meio melancólico, meio sonhador." Estreitou as pálpebras enquanto fazia a comparação mental. "Sim, você é a cara chapada da May McAvoy."

Amélia, que tal como ele se descontraía a olhos vistos, curvou os lábios rosados e simulou um ar amuado.

"Se quer que lhe diga, estou ofendida consigo."

"Porquê?"

"Esperava que me comparasse com a Garbo. Não são os homens que dizem que a Greta Garbo é a mais bela de todas?"

O rapaz abanou a cabeça, enfático.

"Nem pensar! Para mim, a May McAvoy é a mais bonita."

"A sério? Mais bonita do que a Greta Garbo ou a Gloria Swanson?"

"Ui, muito mais!"

"Ah, então está bem."

Fez-se silêncio. Luís endireitou-se, satisfeito com o piropo que acabara de lhe atirar e sobretudo com a reacção de Amélia. Ela parecia agora mais à vontade e calorosa, o que lhe dava maior confiança.

"E eu?", perguntou Luís.

"Você o quê?"

"Eu pareço-me com quem?"

Amélia fixou-lhe as linhas da face e fez um ar pensativo, como se considerasse a semelhança mais adequada. Passou os dedos pelos lábios e franziu os olhos, apreciando-lhe as linhas quadradas do rosto, a pele lisa de marfim, os cabelos castanho-claros a refulgir contra o hálito de luz, o olhar sonhador a emprestar um suave toque de poeta ao semblante másculo.

"Ah, já sei!"

"Quem?"

Voltou a franzir os olhos.

"Você parece-se com o... o... como é que ele se chama?"

"O Rudolfo Valentino?"

Ela soltou uma gargalhada.

"Não", disse. "O Carmona!"

"Quem?"

"Aquele que foi eleito no ano passado." Apontou para o quadro pregado na parede da biblioteca, exibindo a figura austera do presidente da República em farda militar, as medalhas a lampejarem-lhe ao peito como as penas vistosas de um pavão. "O Carmona!"

Luís observou a fotografia exposta no quadro, um homem de cabelo e bigode brancos, os malares salientes no rosto gasto e macilento, e esboçou um esgar incrédulo.

"Eu? O Carmona?"

Ela ria-se.

"Sim."

"A Amélia está a reinar comigo, não está?" Apontou para o quadro. "Onde é que eu me pareço com o Carmona?! Olhe para ele! É um velho jarreta!"

Mais risos.

"Então é o Carmona quando era novo."

"Ora bolas! O Carmona é feio!"

Amélia inclinou-se para ele, provocadora.

"Como sabe? Porventura aprecia a beleza dos homens?"

"Eu não", apressou-se Luís a dizer, preocupado em afirmar a sua masculinidade. "Mas...

enfim, parece-me que o Carmona nunca entraria numa fita americana... acho eu."

"Pois nunca se pode ter a certeza. Às vezes é preciso botar alguém para o papel de mau, não é?"

Desconcertado com a resposta, Luís baqueteou os dedos pela madeira da mesa.

"Hmm... não me diga que se interessa pela política."

"Um bocadinho. Escuto as conversas."

O rapaz observou-a com mais atenção, fascinado. Aquela moça tinha algo de especial, era um je ne sais quoi que a tornava diferente, como se uma aura própria a envolvesse. Os olhos lânguidos e o sorriso insinuante incendiavam-lhe o rosto e inflamavam-lhe o corpo.

"A sério?"

"Hmm-hmm."

Considerou aquela revelação.

"Nunca conheci uma rapariga que se interessasse pela política."

Ela observou-o pelo canto do olho, com ar atrevido, segurando-lhe a atenção.

"E eu nunca conheci um rapaz que se parecesse com o Carmona."

"Já vi que tem resposta para tudo."

A rapariga soltou uma gargalhada.

"É o que diz a minha mãe. Sou respondona."

Esforçando-se por não parecer hipnotizado por Amélia, Luís levantou de novo os olhos para o quadro, fitando a figura emproada do presidente da República.

"A sério que me pareço com ele?"

Amélia abanou a cabeça.

"O que acha?"

"Quer dizer, eu acho que não."

"Claro que não", concedeu. "Você parece-se consigo mesmo, não há ninguém que se lhe assemelhe."

"Nem mesmo o Rudolfo Valentino?"

Ela voltou a rir-se, uma deliciosa expressão trocista a bailar-lhe nos olhos.

"Pff... não exagere!"

Foi nessa altura que soou o toque a anunciar que era hora de irem para as aulas. O

burburinho recrudesceu lá fora e Amélia, quase num salto, agarrou no enorme volume que consultava, colocou-o na estante e escapuliu-se da biblioteca.

"Até logo!"

"Vemo-nos depois no recreio?"

Já no corredor, ela deitou-lhe um olhar traquina.

"Porque não?"

Passaram a encontrar-se todas as manhãs, antes do primeiro toque no liceu e nos intervalos das aulas. A princípio sentiam dificuldade em arranjar tema para conversa, tão acanhados ficavam um diante do outro, mas com o tempo foram ganhando à-vontade e as palavras começaram a fluir com naturalidade.

Passaram a tratar-se por tu e descobriram que várias pequenas coisas os uniam, entre elas a idade, uma vez que ambos tinham dezassete anos. Mas partilhavam também a orfandade. Luís perdera o pai aos cinco anos e a mãe no ano anterior; Amélia ficara sem o pai aos seis anos.

"Morreu com os gases", explicou ela num intervalo entre a aula de Aritmética e a de Português.

"Quais gases?"

"Os da guerra, claro. O papá era cabo no regimento 10, aqui de Bragança, e foi para França combater quando eu tinha quatro anos."