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O curioso é que também Joana se revelou reservada, embora neste caso tal derivasse da sua natureza.

"Sou órfã", revelou ela quando um dia o passeio os levou até ao recatado jardim da Praça da República. "A minha mãe morreu há dois anos."

"Ah, coitada", exclamou Luís, apercebendo-se de que a ferida era relativamente recente. "És agora tu quem trata do teu pai?"

"O meu pai morreu quando eu era pequenina."

"Mas, então, e o juiz?"

"É o meu padrinho. Ficou viúvo há uns anos e a minha mãe mandou-me para cá viver com ele."

"Porquê?"

"Porque ele não sabia cuidar dele mesmo, coitado. E porque um dos desejos da minha mãe era que eu frequentasse aqui o Colégio do Sagrado Coração de Maria."

"O que tem o colégio de especial?"

"É um colégio de freiras francesas", disse, como se isso explicasse tudo. "Foi aqui que ela estudou quando era nova e tinha a mania de que não havia escola melhor." Baixou a voz, quase num aparte. "Eu cá acho que a viuvez do meu padrinho serviu de pretexto conveniente. Como ele vive aqui e o colégio é também em Penafiel, a minha mãe aproveitou e mandou-me para cá."

Havia em Joana algo que tocava fundo no transmontano. Luís apercebeu-se de que a rapariga tinha um encanto melancólico que lhe era estranhamente familiar, uma espécie de reminiscência de Amélia, como se o espírito de uma vivesse na outra. Aos seus olhos, Joana tornara-se, de certo modo, Amélia. A parecença física e alguns trejeitos davam-lhe a ilusão de que se tratava da mesma pessoa, uma impressão tão forte que a mente logo tratou de sublimar as diferenças registadas pelos olhos, como se a vontade de recuperar Amélia fosse mais poderosa do que a razão. Chegava a pensar que eram coisas da Providência; a paixão do liceu fora-lhe roubada, mas o destino compensava-o com uma segunda oportunidade. Amélia era-lhe devolvida com outro nome.

As coisas entre ambos só voltaram a evoluir ao fim de um mês, quando um dos passeios diários os levou para os lados dos Paços do Concelho. Os périplos da rapariga até ao tribunal tinham-se tornado cada vez mais variados, levando-os a outros pontos da pequena cidade; parecia a Luís que eram uma nova versão dos inesquecíveis passeios com Amélia até ao liceu de Bragança, só que numa outra terra e com um itinerário em permanente mutação.

Numa tarde invernosa ia ele garboso no seu sobretudo militar quando Joana o guiou até uma pequena rua que se abria à esquerda e descia íngreme, quase como se deslizasse para um poço. Uma pequena placa anunciava que estavam na Rua Direita.

"Anda daí", disse ela, encolhida num longo casaco azul--escuro. "Vou mostrar-te uma coisa."

"O quê?"

"O sítio mais romântico de Penafiel."

Descer o empedrado inclinado da rua requeria algum esforço de equilíbrio, pelo que o alferes veterinário teve de agarrar a mão da rapariga para a ajudar a caminhar. A pretexto de que estava frio, ela aconchegou-se em busca de calor, e desceram assim até diante de uma igreja de traça renascentista.

"Esta é a Igreja Matriz", revelou ela, os olhos garços a deslizarem pela fachada de pedra antiga.

"Não é romântica?"

A igreja parecia inclinar-se na rua, tentando também ela manter o equilíbrio na artéria oblíqua, uma parte da fachada mais profunda do que a outra. O edifício tinha um óculo no topo e duas colunas jónicas a enquadrarem a porta.

"Bem... é bonita", concordou Luís, um pouco desconcertado. Para local romântico, esperava outra coisa. "Confesso-te que já vi por aqui sítios mais românticos. Olha, o jardim ao pé do tribunal, por exemplo. Parece-me um..."

Ela tapou-lhe a mão com a boca e voltou a olhar para a igreja.

"Os meus pais casaram aqui."

Considerando que se tratava de uma órfã, era evidente que o local onde os pais se haviam casado tinha para ela um intenso valor simbólico, quase mítico.

Cruzaram a entrada e Joana mostrou-lhe o altar.

"É lindo, não é?"

Era um grande altar rocaille, mas Luís sentia-se mais preocupado com o desconforto do que com a sua harmonia. Fazia muito frio dentro da igreja e no ar pairava o odor beato a hóstias e velas queimadas. Joana parecia porém alheia a isso, a atenção focada no altar, como se recuasse até ao dia do casamento dos pais.

A rapariga virou devagar o rosto para Luís e os seus olhos meigos pestanejaram, pareciam borboletas trémulas. Os dois aconchegavam-se ainda um no outro, as faces quase a tocarem-se, o perfume de Amélia a flutuar nos cabelos de Joana. Inebriado, Luís não conseguiu resistir. Inclinou a cabeça, cerrou as pálpebras e com os lábios mergulhou na boca quente.

O namoro foi vivido às escondidas. Encontravam-se na esquina do quartel e iam beijar-se num canto escondido do discreto jardim da Praça da República, atrás do Palacete do Barão do Calvário, onde funcionava o Tribunal Judicial, o vale verdejante espraiando-se para além do muro.

Ao contrário do que sucedera com os múltiplos casos amorosos em Lisboa, desta vez a ilusão de que a namorada era Amélia não se desfez com o tempo. Pelo contrário, foi-se consolidando. Isso constituiu uma surpresa para o veterinário, que se habituara já a ver a magia do enamoramento desfazer-se ao cabo de algumas semanas, quando as semelhanças das sucessivas raparigas com Amélia esbarravam na constatação de que nenhuma era como a primeira.

Com Joana foi diferente. A medida que o tempo passava, mais se acentuava a ilusão de que ela era Amélia. As parecenças entre as duas revelavam-se óbvias e Luís não as questionava; limitava-se a viver na felicidade do momento, como se

Joana fosse realmente Amélia e estivesse diante do amor reencontrado. Na sua mente, as duas misturavam-se numa única e era sempre a antiga namorada que via quando se encontrava com a nova, de tal modo que por várias vezes quase chamou Amélia a Joana.

A semelhança entre ambas fez crescer em Luís aquela convicção de que lhe tinha sido mesmo dada uma segunda oportunidade. Cabia-lhe a ele decidir entre aproveitá-la e esbanjá-la. Começou a recear que circunstâncias que não controlava lhe roubassem Joana da mesma maneira que Amélia lhe havia sido tirada. A incerteza tornou-o ansioso. Estava convencido de que não dispunha de muito tempo para agir e foi na noite da passagem do ano, quando celebrou no quartel a entrada em 1936, que tomou a decisão.

Joana tinha ido celebrar a noite do Ano Novo a casa dos irmãos, que também viviam em Penafiel, e, como 1 de Janeiro era feriado, não tiveram maneira de se encontrar. Mas no dia seguinte, depois de trocarem sinais entre o quintal dela e a janela dele, cruzaram-se na esquina do quartel, como habitualmente, e seguiram em direcção à Praça da República, o seu poiso secreto.

"O que levas aí?", perguntou ela, indicando um cesto na mão do namorado.

Luís ajeitou o pano que cobria o cesto e manteve-o longe de Joana.

"Uma coisa especial", disse. "É surpresa."

Quando chegaram ao banco do jardim para onde iam sempre, o alferes veterinário pousou o cesto no chão e encarou-a.

"Vá, vira-te para o outro lado e tapa os olhos."

Joana fixou o cesto, como se tentasse ver para além do pano que o cobria.