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"Mas o que é isso?"

"Já vais ver", insistiu ele. "Faz o que te digo: vira a cara e tapa os olhos. Anda."

Como uma criança irrequieta, Joana voltou relutantemente o rosto para o tribunal e pôs as mãos sobre os olhos. Ouviu um refolhar surdo atrás dela e suspirou com impaciência.

"Já posso?"

"Espera mais um bocadinho."

O barulho continuou e por duas vezes ela esteve à beira de não conseguir suster a impaciência e quase se virou. Mas conteve-se e esperou pela ordem do namorado.

"Já podes."

Voltou-se e viu uma toalha estendida no banco, sobre a qual se encontrava uma garrafa de vinho do Porto, dois cálices e um pratinho com várias fatias douradas de pão-de-ló.

"O que é isto?"

Luís estendeu-lhe um cálice e uma fatia do bolo.

"Entrámos em 1936 e vamos celebrar, minha querida, porque este ano vai ser muito especial."

Tocou com o seu cálice no cálice dela. "Feliz ano novo!"

Beberam o vinho do Porto de uma assentada e Joana quase ficou sem fôlego. Para compensar o ardor alcoólico que lhe queimava a garganta, engoliu duas fatias de pão-de-ló e soltou uma gargalhada.

"Não sabia que davas tanta importância à passagem do ano."

"Na verdade, não estamos a celebrar apenas a entrada no novo ano."

"Ai não?"

Luís tirou um embrulho do bolso do casaco e estendeu-o à namorada. Joana pegou no pequeno presente e estudou-o com admiração.

"O que é?"

"Abre."

Com os dedos ágeis, a rapariga desfez o papel de embrulho até ficar com uma caixinha minúscula na palma da mão. Abriu a caixinha e o cintilar de uma pedra preciosa quase a ofuscou. Olhou interrogativamente para Luís, que com infinita delicadeza pegou no anel, o fez deslizar num dos dedos dela e lhe devolveu o olhar.

"Casas comigo, Joana?"

XI

Os portões das cavalariças estavam entreabertos quando o capitão Branco se aproximou, o cachimbo espetado na boca, as botas salpicadas de lama. O veterinário encontrava-se ajoelhado sobre a palha e analisava as patas de Relâmpago; cheirava a cavalo e a estrume na estrebaria, mas o fedor não parecia incomodá-lo. O recém-chegado apoiou os cotovelos nos portões e tossiu muito alto, mais para sinalizar a sua presença do que a pedido dos pulmões.

"Meu capitão", admirou-se Luís, virando o rosto logo que ouviu a tosse. "Já voltou?"

"Não, ainda lá estou", disse com ironia. "Claro que voltei."

O veterinário ergueu-se e contorceu o tronco, para aliviar a dor provocada pela posição em que tratava dos animais.

"E como anda Lisboa?"

"Na mesma. O Norte trabalha e Lisboa diverte-se, como de costume."

"E o meu capitão? Divertiu-se?"

"Trabalhei."

"Mau. Não me diga que nem foi ao Parque Mayer..."

O capitão riu-se.

"Sou trabalhador, mas não sou parvo. Claro que fui ao Parque Mayer, então não havia de ir?"

"E então? Qual é a grande sensação do momento?"

"É o Arre, Burro! Mete as estrelas todas no Variedades, parece uma constelação! A Beatriz Costa, a Hermínia Silva, o António Silva e o Vasco Santana... está lá tudo!"

"Ena, é mesmo um elenco de luxo. De quem gostou mais?"

"De todos. De todos." Hesitou. "Bem, a grande figura continua a ser a Beatriz Costa, não é verdade? Que grande artista!"

"É, não é? Ela faz de quê agora?"

"De saloia, mas muito refilona, está a ver o género? Só lhe digo, é um estrondo!"

"Essa miúda é muito talentosa. Tem Lisboa aos pés."

Mário Branco soltou uma baforada aromática.

"E ela com Lisboa e você com Penafiel."

A observação surpreendeu Luís.

"Eu, meu capitão?"

"Sim, você. Bastou eu dar um salto a Lisboa e o alferes pôs-se logo a fazer das suas, hem?"

"Como diz, meu capitão?"

O oficial apontou-lhe o cachimbo fumegante.

"Então você não vai casar, homem?"

"O meu capitão já sabe?"

"Eu sei tudo. O meu dever é saber. A única coisa que ainda não sei é quando é que vossa excelência planeava dar-me a novidade. Ou ia casar sem dizer nada a ninguém?"

"Mas eu não lhe podia dar a notícia, meu capitão. O meu capitão não estava cá."

"Eu sei, mas... caramba, você é mesmo rápido. Mal virei costas, arranjou noiva e... pimba!, já vai dar o nó na próxima semana! Parabéns, homem! A Joana é uma rapariga e peras, hem?"

"O meu capitão conhece-a?"

"À Joana? Claro que conheço! Aliás, tenho obrigação, não é verdade? Afinal é minha cunhada."

"A sério?"

"É verdade, homem. Penafiel é terra pequena, o que pensa você? Aqui todos se conhecem e todos têm relação com todos."

O veterinário coçou a cabeça.

"Pois, estou a ver."

O capitão abriu os braços, efusivo.

"Venham daí esses o'ssos." Puxou o alferes veterinário para si. "Vamos ser da mesma família, que diabo!"

Luís caiu algo desconcertado nos braços de Mário Branco, ainda apanhado de surpresa pela inesperada relação familiar entre o capitão e a namorada. Ainda bem que nunca inquirira sobre Joana junto do superior hierárquico, pensou com alívio. Poderia ter sido embaraçoso.

"Você tem de ir lá a casa", disse o capitão quando se apartaram. "Isto é uma vergonha, a Joana vai casar e ninguém sabe com quem. A família tem de o conhecer."

"Estou às suas ordens."

"O casamento é de amanhã a oito, não é verdade?"

"Sim, é no sábado da próxima semana."

"Eu gostava de o levar este fim-de-semana, mas uma das minhas pequenas está engripada, não pode ser. Temos de lhe dar uns dias para se restabelecer. Que tal quarta-feira?"

"Quarta não posso, meu capitão. Vou passar o dia na feira de Amarante. Devo chegar tarde e a cheirar a gado."

"Não pode adiar isso?"

"Adiar a feira?"

O capitão reconsiderou.

"Tem razão, não pode ser", disse, fazendo um esforço para reconstituir mentalmente a sua agenda. "Quinta-feira não posso eu, já tenho um jantar com o doutor Reis. Só se for na sexta."

"Mas isso é a véspera do casamento, meu capitão."

"Pois é, mas não vejo alternativas. Ou tem melhor sugestão?"

"Não, não tenho."

"Então fica combinado. Jantar na sexta-feira em minha casa."

"Devo levar a Joana?"

O capitão assumiu uma expressão indignada e pôs as mãos à ilharga.

"O homem, você quer atrair azar à sua casa?" Ergueu o indicador, sentencioso. "Na véspera do casamento, nem pensar em pôr os olhos na moça, ouviu? Dá má sorte! Você vai sozinho e a minha patroa prepara-lhe um repasto de que nunca mais se esquecerá!"

Luís riu-se e voltou para junto de Relâmpago.

"Sempre quero ver isso."

Primeiro esticou o braço para fora e com a mão sentiu a temperatura; depois dona Maria desceu os degraus da composição e esperou que o cavalheiro atrás dela lhe trouxesse a mala. O homem tremia com o esforço, mas lá conseguiu pousar o malão no cais e, com um rápido movimento do chapéu, despediu-se da senhora que em má hora lhe pedira ajuda para tirar a bagagem.

Quando Luís chegou ao pé da tia e a cumprimentou, ela respondeu com um sorriso luminoso.

"Belo tempo aqui em Penafiel, hem?", observou, vendo o sol espreitar por entre os flocos de nuvens. "Quando saí de Alfândega à pela manhã estava uma bufarra que só visto. Até marcejava um bocadinho."

"Pois, o tempo aqui é mais ameno, sempre estamos mais perto da costa", concordou ele.

Inclinou-se para a mala pousada ao lado da tia. "Dá-me licença?"

"Tem cuidado que trago aí umas porcelanas para oferecer à noiva. Vê lá se as arruinas."