"Ora viva!"
O capitão Branco veio acolhê-los à porta. Depois de percorrerem um corredor estreito, levou-os por uma escada que rodava em caracol para a direita. Havia um certo odor a mosto dentro da casa; eram decerto as garrafas de vinho arrumadas ao lado da escada.
A fragrância mudou no primeiro andar; deixou de cheirar a vinho e o aroma tornou-se quente e suculento.
"Hmm, que bom!", exclamou dona Maria, que não comia desde essa manhã. "É um esturgidinho?"
"Como?"
"Um esturgido", insistiu ela, usando a expressão transmontana. "Um... um refogado."
"Não, não", corrigiu o capitão. "Vamos ter um belo assadinho."
"E dos valentes, pelo cheiro."
"Ah, sim! Disso pode estar certa! A minha patroa tem um dedo para a cozinha que só visto."
"Bem me cheira, bem me cheira!"
Atravessaram a sala de jantar, ocupada por uma longa mesa muito bem arranjada, os pratos, os copos e os talheres assentes numa toalha de renda branca.
Um vulto emergiu de repente da penumbra, à esquerda.
"Ora aqui está a minha mulher."
O vulto feminino cumprimentou dona Maria e virou-se para Luís. A sala estava escura e o alferes veterinário teve dificuldade em distinguir-lhe as feições.
"Olá, Luís."
A voz, um pouco rouca e estranhamente familiar, atingiu-o como um raio. A porta da cozinha abriu-se nesse instante e deixou a luz jorrar sobre aquela sombra difusa, revelando-lhe os traços delicados da face. Luís arregalou os olhos, incrédulo, vendo mas não querendo acreditar.
Era Amélia.
XII
Foi com gestos maquinais e a mente a revolver-se num turbilhão atordoante de pensamentos que Luís sobreviveu a todo o jantar. As pessoas falavam em torno dele como se fossem estranhas; as conversas não passavam de mero ruído de fundo, de um rumor distante no mar de perplexidades em que se sentia naufragar.
Mas que raio estava Amélia ali a fazer? Era ela a irmã de Joana? Caramba, isso explicava as semelhanças entre as duas! As linhas do rosto, a suavidade dos traços, os olhos garços e melancólicos, as expressões nostálgicas, a maneira de sorrir, o leve toque a May McAvoy.
Nenhuma daquelas parecenças era afinal um acaso! Amélia era a irmã de Joana! Mas como diabo não percebera isso antes? Como fora possível que nunca se tivessem cruzado, que nunca Joana lhe tivesse falado em pormenor da irmã, que nunca ele se apercebesse da inacreditável coincidência?
"Não achas, Luís?"
Olhou atarantado para a tia, que parecia esperar uma resposta.
"Hã?"
"A quinta dos Cerejais. Não achas que ela também podia ser adaptada para o vinho, como aqui a quinta do capitão?"
"Ah, sim. Claro. Sem dúvida."
A tia voltou-se para o anfitrião e a conversa transformou-se de novo num rumor distante. Luís fixou os olhos em Amélia, que parecia tentar evitá-lo e procurava fixar o marido enquanto falava. O
coração apertou-se-lhe. Era ela a mulher do capitão Branco? Mas que loucura vinha a ser aquela?
Como fora possível nunca a ter visto antes? Era verdade que o capitão sempre se mostrara um homem reservado, mas, que diabo, podia-se até ter dado o caso de sccruzar com o casal na rua ou vê-lo na missa. Houvera tantas oportunidades para se aperceber do que se passava, como raio uma coisa daquelas lhe havia escapado?
"... não é?"
Viu a tia de novo calada a olhá-lo, como se aguardasse nova resposta.
"Hã? O quê?"
Dona Maria apertou os lábios, impaciente.
"Olha lá, estás a ouvir o que eu estou a dizer?"
"Eu? Bem... sim, claro."
"Então o que achas?"
Luís embatucou. Olhou para a tia, para o capitão e para Amélia, sem saber o que dizer.
"Será que pode repetir a pergunta?"
Dona Maria suspirou.
"Bem, já vi que não estás a prestar atenção nenhuma ao que eu estou para aqui a dizer."
"Estou, estou", insistiu ele, contrariando o que era evidente. "O que se passa é que... que..."
Buscou desesperadamente
um álibi convincente. "Tenho uma brutal dor de cabeça." Acto contínuo, pôs a mão na testa e os olhos tornaram-se-lhe mortiços. "Ui! Dói-me mesmo a cabeça..."
"Ah, coitadinho! Quando é que isso começou?"
"Foi há bocado. Sabe o que é, fiquei muito tempo sem comer."
"Não seja por isso", atalhou o capitão, empurrando uma travessa de cabrito na sua direcção. "Dê-lhe com força, homem! Arrefinfe-lhe!"
"Não, obrigado. Já comi muito e agora esta dor vai passar depressa."
"Bem, então a Amélia vai-lhe preparar uma tisana especial para as enxaquecas. Vais, querida?"
Querida? O uso da palavra deixou Luís chocado. Ela agora era a querida do... do... do outro?
"Claro que sim", disse a mulher, levantando-se de imediato.
"Não, não", exclamou Luís, erguendo a mão para a travar. "Espere. Não é preciso."
"Olhe que uma tisaninha fazia-lhe bem."
"Deixe estar, eu estou bem. Se ficar caladinho, isto passa. É sempre assim. Não precisa de se incomodar, já estou habituado a estas dores de cabeça. É coisa passageira, desaparece depois de eu comer, vai ver."
A tia e o capitão retomaram a conversa; Luís tinha a impressão de que falavam de terras e de cultivo, mas os pensamentos arrastaram-no de novo para Amélia. Será que ela também havia sido apanhada de surpresa por vê-lo ali? Cravou os olhos nela, perscrutando-a. Não, dava-lhe a impressão de que não. Vendo bem, ela lançara-lhe um Olá, Luís! muito revelador; não fora um cumprimento surpreendido, lançado por alguém submerso em espanto, mas uma saudação resignada, como se soubesse o que aí vinha. Agora que Luís pensava nisso, pôs-se a escutar mentalmente o som da voz a saudá-lo quando entrara na sala. O Olá Luís! passou consecutivamente na sua cabeça, como um disco riscado no gramofone.
Foi então que se apercebeu de que aquelas palavras, e sobretudo o tom resignado em que haviam sido proferidas, exprimiam uma conformada e imensa tristeza.
"Olá, mãaaaae!"
A voz infantil interrompeu a conversa e duas crianças apareceram na sala a correr. Um rapazinho pequeno agarrou-se às pernas do capitão Branco, que com uma gargalhada o puxou para o colo, enquanto uma menina ainda mais nova saltitou para os braços de Amélia.
"Então, meninos?", perguntou o capitão. "Já vieram?"
"Simmm!"
Luís observava a cena embasbacado. Amélia era mãe! Com o choque de a encontrar ali nem se lembrara que o capitão lhe dissera que tinha filhos. Amélia era mãe! Foi nesse instante que caiu totalmente em si e tomou consciência da irreversibilidade da situação em que ela se encontrava.
Amélia casara e não fora com ele; tinha filhos e não eram seus. Como diabo acontecera tudo aquilo? Que mal fizera ele para estar a ser confrontado com aquela realidade inultrapassável?
Amélia era dele! Como fora possível que o tivessem espoliado daquele modo?
"Onde está o tio Chico?", perguntou Amélia à menina que se abraçava a ela.
"Vem ali!"
Um rapaz entroncado, de costas largas e corpo de gorila, o rosto a exibir grandes arcadas supraciliares, entrou na sala com um grande cesto na mão.
"Então, Chico? Tão cedo?"
"Foram os meninos, senhora. Queriam vir para casa."
Evitando encarar Luís, Amélia voltou-se para dona Maria.
"É o meu irmão Francisco", anunciou. "Ficou com as crianças em casa da minha sogra."
"A ideia era elas deixarem-nos jantar em paz", explicou o capitão Branco. Fez cócegas ao filho. "Mas acho que as tréguas já acabaram, não é seus marotos?"
Dona Maria olhava embevecida para as crianças.