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"Ai que lindos meninos! Vocês têm dois filhos maravilhosos, não há dúvida."

"Três", corrigiu o capitão.

Francisco pousou o cesto no chão e afastou uma rendinha, revelando um bebé a dormir.

"É a Lourdinhas", disse Amélia. "Vai fazer um ano."

"Ai que querida! E os outros?"

"O António, quantos anos tens?", perguntou o capitão ao rapazinho sentado ao seu colo.

A criança exibiu a palma da mão aberta.

"Cinco."

"E a Rosinha tem três", acrescentou o pai.

Por mais que tentasse esconder o espanto, Luís tudo observava de boca aberta. Eram três filhos e o mais velho tinha cinco anos. Ora a última vez que vira Amélia fora no início de 1930, fazia por aquela altura seis anos. Isto queria dizer que fora logo no ano seguinte que ela tivera um filho de outro. De outro. E, depois disso, pelos vistos nunca mais parara!

Sentiu uma fúria surda crescer-lhe no peito. Ela nunca mais tinha parado com o outro!

Deixara a mãe afastá-la de Luís, casara com o capitão Branco e, não contente com tudo isso, desatara a parir filhos! Como pudera ela fazer-lhe aquilo? Como era possível que Amélia lhe tivesse sido tão infiel?

"E este rapaz?", perguntou dona Maria, apontando para o adolescente abrutalhado que permanecia em pé. "A senhora disse que é o seu irmão?"

"O Chico? Sim, é... é o meu irmão."

"Seu e da Joana?"

"Sim. Somos os três irmãos."

A atenção de Luís foi desviada para o rapaz de cabelo curto e pequenos olhos negros. Tinha um rosto que lhe era familiar. Atónito, os olhos arregalados de estupefacção, percebeu enfim quem ele era. A face alargara e alongara, o corpo tornara-se ainda maior e mais compacto, mas aqueles olhos e aquela expressão vazia não enganavam, não havia dúvidas de quem se tratava. Era o bastardo abandonado em bebé numa igreja de Bragança! Era o filho adoptivo de dona Beatriz! Era o fedelho que com apenas doze anos lhe dera uma tareia quando daquele derradeiro confronto com a mãe de Amélia!

"Bem, o mal está feito!", exclamou o capitão Branco, batendo com a palma da mão no joelho.

"Se não dormem com a avó, dormem aqui. E é já."

"Oh, não!", protestou o pequeno António.

"Oh, sim!", devolveu o pai, que logo ergueu a cabeça para Francisco. "Dormes cá?"

"Não, senhor", disse o brutamontes, torcendo os dedos entrelaçados. "Vou dormir à quinta."

O capitão ergueu-se da mesa.

"Se me dão licença, vou então deitar os pequenos."

"Ai, senhor capitão", disse dona Maria. "Se calhar é melhor irmos andando. Já se vai fazendo tarde."

"Que disparate!", cortou o anfitrião. "Ainda nem nove horas são! Antes das dez não sai ninguém desta casa."

"Mas, senhor capitão..."

"Não há mas nem meio mas", atalhou ele, num tom que não admitia discussões. "Vou só pôr as crianças a dormir e já volto, está bem?" Olhou de relance para a mulher. "Vens, querida?"

Amélia entregou-lhe a menina que se aninhava ao seu colo.

"Vai tu. Eu fico aqui com os convidados."

A tia Maria ergueu-se, prestável.

"Eu ajudo-o, senhor capitão."

"Não é preciso", disse ele. "Já estou habituado a adormecer as crianças." Fez um sinal na direcção da empregada, uma mulher pequena e silenciosa que se aproximava da mesa.

"Além do mais, a Manelinha ajuda-me."

"Eu insisto", disse a tia Maria. "Adoro crianças e o senhor não me vai roubar o prazer de ajudar uma delas a adormecer,

pois não?"

"Por amor de Deus, não seja por isso. Venha daí!"

Metamorfoseando-se subitamente, a sala de jantar esvaziou-se. Num instante era uma algazarra infernal, no momento seguinte instalara-se a tranquilidade. O capitão e a tia Maria desapareceram com as três crianças e a criada, enquanto Francisco se despedia e saía discretamente de casa.

Na sala apenas se escutava o estrepitar nervoso e reconfortante da lareira; as chamas projectavam sombras dançantes pelos cantos e no ar flutuava o aroma quente da lenha a arder.

Foi então que o olhar de Luís se prendeu no de Amélia.

XIII

Amélia deixou escapar um suspiro.

"Sou uma péssima mãe", disse, preenchendo o embaraçoso silêncio que se instalara entre ela e Luís. Indicou com a cabeça a porta da sala, por onde todos tinham acabado de sair. "Ele é que trata dos miúdos. Conta-lhes histórias, canta-lhes napolitanas, brinca com eles." Novo suspiro. "Eu não tenho paciência nenhuma. Nenhuma, nenhuma, nenhuma."

O silêncio voltou, pontuado pelo incansável estralejar da lareira no seu labor cálido. Luís manteve os olhos fixos na antiga namorada, a mente vazia e o coração cheio, sem nada falar e com tudo para dizer, as palavras a expirarem-lhe na garganta.

"O que nos aconteceu?"

Foi apenas o que conseguiu dizer, mas a pergunta encerrava tudo. Amélia baixou os olhos e sorriu o sorriso dos tristes, o rosto derramando-se numa expressão melancólica.

"Aconteceu-nos a vida."

A lareira estalou, como se quisesse argumentar.

"Mas como foi possível ter sucedido o que sucedeu?" Baixou a cabeça. "A bem dizer, nem percebo bem o que nos aconteceu..."

"Foi a minha mãe."

"Eu sei que foi a tua mãe. Mas porquê?"

Amélia encolheu os ombros.

"Cismou contigo. Achava que tu eras um parolo de Alfândega, que não sabias o que querias, que ainda davas em veterinário e eu acabaria numa casa cheia de pulgas e percevejos... enfim, essa lengalenga toda."

Luís contraiu o rosto, incrédulo.

"Mas tudo isto foi porque eu lhe disse que queria ser veterinário? Um veterinário é um médico, não é um cangalheiro. Que eu saiba, tenho uma profissão de prestígio. Como pôde ela criar todo este problema só por causa disso?"

A anfitriã mordeu o lábio inferior, pensativa.

"Tens razão", concedeu, após reflectir um instante. "Vendo bem as coisas, aquela conversa do veterinário-não-presta não passava de uma desculpa que ela inventou às três pancadas. O facto é que a minha mãe não queria que eu casasse contigo, ponto final."

"Mas porquê?"

"Acho que ela tinha outras ideias."

"Que ideias?"

Amélia respirou fundo, como se lhe custasse abordar o assunto.

"É um pouco difícil de explicar."

"Julgo merecer que tentes."

Era uma boa razão para tentar explicar o inexplicável, raciocinou ela. Espreitou a porta da sala, para se assegurar de

que ninguém ali estava nem se aproximava, e inclinou-se na direcção de Luís.

"Não sei se percebeste, mas a minha mãe era uma pessoa traumatizada pela morte do meu pai", começou por dizer em voz baixa. "Como te contei uma vez, ele era cabo do exército e faleceu por causa dos gases que inalou lá em França. Foi então que ela cismou que as filhas iriam casar com um oficial. Achava que isso é que era coisa de prestígio. São os militares quem manda no país, costumava dizer. De maneira que primeiro tentou com a Joana. Conhecia muito bem o juiz Brandão, aqui de Penafiel, que se dá muito com militares."

"Aliás, vive ao lado do quartel."

"Nem mais. Quando o juiz ficou viúvo, a minha mãe mandou a Joana parar aqui, a pretexto de o ajudar. A verdadeira ideia, parece-me a mim, era integrá-la no meio militar, na esperança de que surgisse um pretendente."

"E surgiu?"

"Sim, alguns. Mas nenhum tinha pedigree que satisfizesse a minha mãe. Eram todos uns pelintras. Além do mais, a Joana era ainda muito nova, havia tempo."

"E depois?"

"Uma vez viemos aqui a Penafiel visitá-la e, num baile ali no Grémio, conheci o Mário, que na altura era tenente."

"Qual Mário?"

"O meu marido. Apresentou-se como o tenente Mário Branco. A minha mãe viu-me a conversar com ele, foi indagar e descobriu que era um rapaz de boas famílias."