"Quer dizer que já o conhecias antes de mim?"
"Sim, mas isso não significa nada. Namoriscámos um bocadinho, é verdade, mas eu era muito nova. Aquilo foi mais um jogo de adolescentes do que qualquer outra coisa."
"Então como acabaste por casar com ele?"
Amélia voltou a respirar fundo. Era notório que aquela parte era difícil de narrar.
"É muito complicado", disse. "O Mário era de uma família prestigiada aqui na cidade, tinha terras e tudo, e a minha mãe encorajou a coisa. Sempre que vínhamos a Penafiel visitar a Joana, pimba!, ela arranjava maneira de suscitar um encontro entre mim e o Mário.
Ou era um almoço, ou era um piquenique, ou era um baile, ou era isto, ou era aquilo.
Inventava sempre qualquer coisa. De modo que, embora não fôssemos namorados, criou-se uma certa relação entre nós."
"Mas a tua mãe dizia-te mesmo que queria que tu casasses com ele?"
"Não, não era assim tão directa. Na verdade, nem sequer tocava no assunto. Era demasiado esperta para o fazer. Mas o que é facto é que ia criando as oportunidades. Entre mim e o Mário não acontecia nada, mas as sementes estavam lançadas..."
"Até que apareci eu."
Amélia sorriu.
"A minha mãe entrou em pânico quando soube da tua existência."
"Ai sim? Ela disse-te?"
"Claro que não. Já te expliquei que ela era muito esperta. Mas é fácil perceber que vinhas dar cabo daqueles planos todos, não é verdade? Põe-te na posição dela: então andava ela em mil trabalhos a arranjar tudo muito bem arranjadinho e a filha ia apaixonar-se por outro? Tu eras a peça que não encaixava neste esquema grandioso que ela concebeu na sua própria cabeça. Pior ainda, eras a peça que dava totalmente cabo do esquema.
Portanto, a minha mãe começou logo a minar as coisas e a montar um plano de emergência.
Veio cá a Penafiel às escondidas e conversou com o Mário.
Disse-lhe que eu estava apaixonada por ele, mas que, como ele não se decidia, aparecera outro rapaz e a coisa poderia dar para o torto. Logo, e se o Mário estava mesmo interessado, era melhor consumar as coisas o mais rapidamente possível."
"E ele?"
"Estava interessado."
Luís sorriu sem vontade.
"Então não haveria de estar?", observou, admirando-lhe as linhas perfeitas do rosto. Que saudades sentia ele daqueles olhos de ouro! Subitamente fatigado, massajou as têmporas com a ponta dos dedos e abanou a cabeça. "Ou seja, a tua mãe precipitou os acontecimentos."
"E de que maneira! Conversou com o Mário e a família dele nas minhas costas, sempre convencendo-os de que me representava, e até marcou a data de casamento. Foi ao Porto preparar o enxoval e tudo. E eu, inocente e ingénua, não sabia de nada!"
"Isso é incrível."
"E incrível para quem não a conhecia, Luís. A minha mãe, quando se lhe metia uma coisa na cabeça, era capaz de tudo. De tudo."
"Como se viu."
"Até que, na véspera do casamento, deu o golpe que andava há tanto tempo a planear. Quando cheguei a casa, vinda do liceu, deparei-me com o meu quarto vazio. Numa manhã, ela e o Francisco empacotaram todas as minhas coisas e enfiaram-nas numa caminheta para Penafiel. Pergun-tei-lhe o que se passava e ela disse que eu era uma ingrata, que ela se sacrificara por mim e eu, em vez de lhe agradecer, cuspia nela. Perguntei-lhe a que se referia e ela respondeu-me que filha dela não se casaria com um veterinário nem iria
viver numa casa cheia de pulgas. Começámos a discutir e a minha mãe anunciou-me que me punha na rua. Eu não teria mais nenhum lugar para viver, iria para a rua. Pôs-me cheia de medo, como calculas. Fiquei a imaginar-me a viver literalmente na rua."
"Ela não te fazia isso..."
"Luís, já te disse mil vezes: tu não conhecias a minha mãe. Quando se lhe metia uma coisa na cabeça era capaz de tudo."
Ele esboçou um ar incrédulo.
"Tu achas que ela te punha na rua? A tua mãe?"
"Não tenho dúvidas nenhumas."
"Caramba!", exclamou, reconstituindo o rosto de dona Beatriz na mente. Logo que a conhecera percebera que ela era torcida, mas nunca imaginara que chegasse a tais extremos. "Podias ter vindo ter comigo."
"Pensei nisso, mas vi logo que não podia ser."
"Ora essa! Porquê?"
Amélia inclinou a cabeça.
"O Luís, ainda perguntas porquê? O que farias tu se eu te aparecesse à porta da pensão sem nada?"
"Acolhia-te, claro."
"Ai sim? íamos os dois dormir para o teu quarto na pensão?"
Luís percebeu o argumento.
"Pois, tens razão. Não podia ser." Considerou o cenário e pôs-se a imaginar soluções alternativas. "Bem, sempre podia mandar-te para a tia Maria..."
"E eu ia viver para Alfândega?"
"Porque não?"
"E a tua tia? Achas que ela ia mesmo acolher de braços abertos uma desconhecida que lhe aparecia pela frente?" Abanou a cabeça. "Temos de ser realistas, Luís. Tu ainda eras estudante, não tinhas maneira de me sustentar. E eu era muito nova e estava aterrorizada. Já me via a viver na rua e tudo. Nestas circunstâncias, como poderia eu ir contra a vontade da minha mãe?"
Encolheu os ombros. "Não podia."
Luís esfregou o queixo, rendendo-se à evidência. Ela tinha razão.
"Portanto, vieste para Penafiel."
"Chorei toda a viagem. A minha mãe tinha previsto tudo e alugou um automóvel para a viagem.
Se não fosse isso, seria uma cena danada no comboio. Do que ela se livrou!"
"E casaste no dia seguinte."
"Toda a gente pensava que os meus olhos vermelhos eram de chorar de alegria."
Ele observou-a com compaixão.
"Como foi o casamento?"
"Muito duro. Tive de me forçar a sorrir para esconder o que me ia na alma."
"Podias ter feito cara contrariada. Assim toda a gente veria a verdade e talvez não te casasses."
"Não deves ter ouvido o que eu te expliquei, Luís", disse Amélia, abanando a cabeça. "Tu não estás a perceber o que me aconteceria se o Mário já não quisesse casar comigo?"
"Ficarias solteira na mesma."
"Ficava na rua, Luís. A minha mãe já me tinha expulsado de casa! Ou eu casava com o Mário e ficava com ele, ou não me casava e ficava na rua. É tão simples quanto isso."
"Não acredito."
"Que acredites ou não, isso não muda nada. A minha mãe não iria recuar nessa questão. Era para ela um ponto de honra. Por isso eu nunca poderia dar a entender que casava contrariada, entendes?
Se o Mário se apercebesse disso, cancelaria imediatamente o casamento. Seria um desastre para mim! Foi por
isso que fiz por sorrir durante toda a cerimónia. E quando me vinham as lágrimas eu dizia que era de felicidade."
Luís recostou-se na cadeira, absorto nos seus pensamentos. Assim postas as coisas, não havia dúvida de que Amélia não tivera qualquer alternativa. A mãe encurralara-a. Grande cabra! Só tinha pena de não a ter esganado quando teve oportunidade.
"Onde está ela?"
"Quem?"
"A tua mãe, claro."
"Já faleceu, coitada. Foi há dois anos, com uma síncope. Estava na loja, em Bragança, quando caiu redonda no chão. Nem sequer soltou um ai."
Lembrou-se que Joana já lhe tinha contado que a mãe morrera dois anos antes. Não fizera a relação, como é evidente, uma vez que na altura desconhecia que Amélia e Joana eram irmãs e mesmo naquele momento isso parecia-lhe inacreditável.
"Quando é que te apercebeste de que eu estava aqui em Penafiel?"
"Foi através da minha irmã."
"O quê?", espantou-se Luís. "Ela sabe de... de..."
"Não, não sabe nada. Disse-me que tinha um namorado e que ele se chamava Luís Afonso."