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Mordeu o lábio. "Ia-me dando um fanico quando ouvi o teu nome, mas ainda pensei que fosse coincidência, sobretudo porque ela me explicou que eras um oficial do exército. Mas depois de a Joana me revelar que eras o veterinário do quartel, logo vi que só podias ser tu. Ela fazia muita questão que eu te conhecesse, mas recusei-me liminarmente. Como compromisso, aceitei ficar no Jardim Público à hora em que vocês por ali iam passar. Foi assim que te vi."

Fez-se silêncio.

"E então?"

"E então, nada. Apeteceu-me morrer, só isso."

Luís fez um sinal com a cabeça, indicando a porta da sala.

"E ele? Sabe que nos conhecemos?"

"Não. Ninguém sabe nada de nada. Não disse a ninguém."

Mais uma pausa. A conversa avançava nesta altura aos solavancos.

"E agora?", perguntou Luís.

"Agora, o quê?"

"O que vamos fazer?"

Amélia encolheu os ombros, resignada.

"Nada."

"Nada como? Não percebeste o que aconteceu? Nós reencontrámo-nos! Podemos recuperar o que nos foi roubado! Temos a possibilidade de..."

"Não sejas tonto", atalhou ela. "Não podemos fazer nada."

Luís agarrou-lhe as mãos e fitou-a com intensidade.

"Estás enganada, Amélia. Não é tarde de mais. Ainda temos a vida à nossa frente. Agora que..."

"Luís."

"... nos reencontrámos, podemos..."

"Luís!"

Ao ouvi-la erguer a voz, ele hesitou.

"O que é?"

Amélia retirou as mãos que o antigo namorado agarrava com ardor.

"Eu sou casada e tenho três filhos. Tu estás noivo e vais casar amanhã com a minha irmã. É

tarde de mais para nós. Percebes? É tarde de mais."

Ele bateu com a palma da mão na mesa, num gesto de rebeldia.

"Não me caso."

"Não sejas parvo."

"Não me caso, já disse."

"E fazes o quê? Deixas a Joana num pranto para quê? Para te casares comigo? Mas eu já estou casada! Tenho três filhos para criar! Para que vais complicar ainda mais as coisas?"

Luís passou a mão pelo cabelo, desorientado. Agora era ele que se sentia encurralado.

"Então que podemos fazer?"

"Nada."

"Nada, como? Como vou aguentar estar no altar a casar com a tua irmã e saber que tu estás ali atrás a ver tudo?"

Amélia apontou-lhe o dedo.

"Vais aguentar como eu aguentei!", exclamou ela. "Vais aguentar com um sorriso nos lábios e vais ser forte porque eu também serei forte! Vais aguentar porque não há alternativa senão aguentares!"

Luís voltou a recostar-se na cadeira e suspirou; o seu corpo parecia um balão a esvaziar-se.

"Estás a pedir-me o impossível. Estás a pedir-me que..."

"Chiu!"

Amélia mandou-o calar-se e voltou a cara para a porta, atenta aos barulhos. Como em resposta, ouviram-se passos e o som murmurado de uma conversa a aproximar-se. Acto contínuo, o capitão Branco e dona Maria entraram na sala, sorridentes.

"Já está", anunciou o oficial. "Os nossos anjinhos dormem o sono dos justos."

"Ai, são tão queridos!", exclamou dona Maria. "A senhora está de parabéns, dona Amélia. Os seus pequenos são realmente um encanto."

Amélia forçou um sorriso.

"Obrigada."

"Então e vocês?", quis saber o capitão, sentando-se à mesa. "Do que têm falado?"

"Oh, disto e daquilo", retorquiu Amélia, olhando de soslaio para Luís. "Nada de especial."

"A minha Amelinha é uma pessoa muito melancólica, alferes", disse Branco. "Por isso, não estranhe."

"Melancólica? A Amélia? Nunca reparei em tal!"

Mal acabou de proferir a frase, Luís quase pôs a mão na boca. Ele e a sua língua enorme!

"Como é que nunca reparaste em tal?", perguntou a tia Maria. "Acabaste de conhecer a dona Amélia..."

"Pois, mas... enfim... nunca esta noite reparei que a... a dona Amélia fosse mefancóhca." Olhou para ela, simulando cerimónia. "O que eu quero dizer é que a senhora me parece perfeitamente normal."

A tia Maria soltou uma gargalhada.

"Então não havia de ser normal?", perguntou. "O Luís, tu hoje estás de todo! Deve ser dessa tua dor de cabeça."

"E do casamento", adiantou logo o capitão. "Não se esqueça que o rapaz casa amanhã. Não há homem que não fique um pouco atrapalhado quando está a vinte e quatro horas de pôr a corda ao pescoço, não é verdade?"

A tia Maria olhou para Luís e tocou no relógio, como quem diz que já se iam fazendo horas.

"Pois é", exclamou ele. "Justamente por causa do casamento, não podemos demorar-nos mais, não é verdade?"

"Oh! Já?", protestou o dono da casa.

"Tem de ser, tem de ser."

"Mas fiquem mais um pouco."

Os dois lados cumpriam o ritual do final dos jantares, os anfitriães insistindo que os convidados ficassem, os convidados

repetindo que tinham de sair para não se imporem. Depois de vigorosas insistências em ambos os sentidos, Luís levantou-se e fez uma vénia na direcção de Amélia e do capitão Branco.

"Minha senhora, meu capitão", disse. "O jantar estava uma delícia e a conversa foi maravilhosa. Mas amanhã vai ser um longo dia e precisamos de nos deitar cedo. Com a vossa licença..."

Ergueram-se todos da mesa numa cacofonia de cadeiras a arrastarem-se pelo soalho. Os donos da casa acompanharam os convidados até à porta, onde, e apesar do frio e da humidade, ainda ficaram mais um minuto a trocar amabilidades. No momento em que se beijaram no rosto em despedida, Amélia soprou duas palavras secretas ao ouvido de Luís.

"Sê forte."

XIV

Apesar do frio, a Igreja Matriz estava apinhada àquela hora da madrugada. As sóbrias fardas militares intrometiam-se entre os exuberantes vestidos e os elegantes fatos domingueiros escolhidos para a ocasião. A sociedade penafidelense comparecera em peso e exibia-se no casamento da protegida do distinto juiz Brandão.

Aperaltado na sua garbosa farda de gala, Luís virou a cabeça quando o burburinho da multidão morreu subitamente, como se a caótica orquestra de vozes obedecesse a um maestro invisível.

Recortadas pela luz difusa da aurora, duas figuras assomaram à porta e começaram a desfilar devagar ao longo da nave central da igreja. Os olhos de todos pousaram na rapariga que o sisudo juiz levava pelos dedos e logo recomeçou o burburinho, mas agora sussurrado; eram os comentários à noiva e ao enxoval. Joana vinha deslumbrante, como todas as noivas em dia de casamento; trazia um vestido branco muito rendilhado, com uma longa saia a deslizar pelo chão e uma pequena coroa cor-de-rosa a florir-lhe os cabelos.

Aguardando-a no altar, o noivo engoliu em seco. Tinha prometido a si mesmo que não olharia uma única vez para Amélia, mas naquele instante não resistiu e espreitou-a de fugida; a sua paixão do liceu estava na fila da frente, o rosto voltado para o corredor central, os olhos presos na irmã, que caminhava para o altar. Luís tentou adivinhar o que sentia, mas Amélia posicionara-se de perfil, o rosto fechado como uma estátua. Era impossível perceber o que lhe ia na cabeça.

Os dois recém-chegados chegaram ao altar e o juiz entregou Joana a Luís. Os noivos e os padrinhos de casamento, o juiz Brandão e a tia Maria, voltaram-se para o pároco, um homem magro já curvado pela idade, e a cerimónia começou.

"Deus criou o ser humano varão e mulher", disse o padre, a voz fraca e sibilante. "Deus abençoou-os dizendo-lhes: crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra. Foi nesse instante que o Senhor instituiu os sagrados laços do matrimónio. E é por isso, meus filhos, que nos reunimos hoje, nesta sagrada Igreja Matriz de São Martinho, para celebrar a união destes dois filhos de Deus, Joana Maria Rodrigues Campos e Luís António Afonso. Deus, que é amor e criou o homem por amor, chama-o agora a amar." Apontou o dedo aos noivos.