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"Jesus disse: serão dois numa só carne. Que seja feita a Sua vontade."

"Ámen!", responderam os fiéis em coro.

A cerimónia prolongou-se por uma hora, com os salmos, as leituras, as orações e o sermão. Luís tinha os pés gelados sobre a pedra fria, mas sentia-se anestesiado, quase imune ao desconforto. Passou a cerimónia como se não fosse ele quem ali estava, como se fosse testemunha e não protagonista, como se o espírito se tivesse erguido do corpo e tudo observasse com alheamento.

Os minutos eternizavam-se e no meio do torpor que o invadira ouviu o padre mencionar o nome de Joana e viu-a responder "sim" sem quase entender o significado da palavra.

O estado beatífico de letárgico desprendimento só se esfumou quando, sem perceber como nem porquê, deu consigo no momento mais importante, o instante em que o padre se voltou para ele e lhe fez a mesma pergunta, aquela que todos tinham vindo à igreja ouvir.

"Luís António Afonso", interpelou-o o padre com solenidade, a voz a ganhar a força que até aí não tivera. "Aceitas Joana para amar e acarinhar, para honrar e confortar, na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, até que a morte vos separe?"

O noivo arregalou os olhos, horrorizado, subitamente desperto, sem saber o que fazer, incapaz de se decidir, vacilante, interrogando-se sobre como fora possível ter chegado àquele ponto, àquela pergunta, àquela resposta.

"Sim."

Como se não passasse de um mero espectador, observou a sua própria boca murmurar o "sim"

final como se tivesse vida própria. Parecia que naquele momento a mente alijara responsabilidades e atirara para o corpo o encargo de enunciar os votos matrimoniais; a razão sujeitara-se ao que o coração ainda não aceitara.

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, declaro--vos marido e mulher."

A fórmula pareceu materializar-se do nada e atingiu-o como um soco no estômago. Estava casado, e não era com Amélia! Pior, Amélia encontrava-se algures lá atrás e assistia a tudo. Como num sonho, o corpo sempre a comportar-se com o automatismo de uma coreografia muito ensaiada, pôs o anel de ouro no dedo de Joana, deixou que ela lhe fizesse o mesmo, afastou o véu de renda branca que ocultava os olhos da mulher e colou-lhe nos lábios um beijo casto e seco.

Foi animada a festa no Café Lima, o estabelecimento da Praça Municipal reservado nesse dia para os convidados dos noivos. Um pianista dedilhava com entusiasmo as canções do momento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos comensais. Um grupo abrira alas e observava os casalinhos a rodopiarem ao ritmo alegre da música, enquanto outros iam petiscando os rissóis, os pastéis de bacalhau, as pernas de frango e os mais diversos aperitivos colocados nos pratinhos ao longo da mesa junto à parede do fundo.

Por várias vezes Luís buscou Amélia com os olhos, mas ela parecia evitá-lo; olhava para aqui e para ali, conversava com este e aquele, observava o pianista ou espreitava um casal a dançar, mas nem uma vez se voltou para o antigo namorado. Inquieto e irrequieto, Luís procurava-lhe um olhar de perdão, uma expressão de compreensão, um gesto de que nada mudara, mas dela apenas extraiu um rosto vazio, uma postura de alheamento, um desinteresse que o magoava. Como podia Amélia mostrar-se tão desapegada? Seria possível que ela já lhe fosse de tal modo distante que assistir ao seu casamento lhe tivesse sido totalmente indiferente?

"Em que pensas, querido?"

A voz fê-lo voltar a si.

"O quê?"

Era Joana, que se sentara ao seu lado e lhe agarrava o braço, terna e calorosa.

"Pareces ter um ar perdido. Estás bem?"

"Ah, sim. Estou bem, claro. Apenas um pouco cansado."

"Espero que não demasiado", adiantou ela, de imediato baixando os olhos e corando.

Admirado com o comentário, Luís olhou-a interrogativamente. Não a imaginava uma criatura com desejos; sempre a vira pura e virginal, talvez porque desde que a conhecera que a encarava como uma nova versão de Amélia. A constatação de que havia carne naquela fêmea despertou-lhe uma inesperada volúpia nas estranhas. A última vez que tivera uma mulher fora em Lisboa. Era verdade que o jantar da véspera e o reencontro com Amélia lhe tinham mostrado que continuava a amar a antiga namorada, mas, que diabo!, ele era homem e um homem era um homem. O

casamento até podia ter sido um disparate e talvez jamais conseguisse superar a paixão por Amélia, mas, se não podia ter o futuro que desejava, podia pelo menos aproveitar o que havia e o que havia era a certeza de que nessa noite ia possuir uma mulher bonita.

Inclinou-se para Joana e beijou-lhe a face.

"Fica descansada", sussurrou. "Vais descobrir que casaste com um touro."

As prendas amontoavam-se a um canto do café, onde o par recém-casado ia deixando os pacotes depois de os receber dos convidados. Estes iam já saindo. A festa fora longa e estava na hora de voltarem para casa. Foi nessa altura que dona Maria decidiu aproximar-se. A tia e madrinha de casamento de Luís vinha com um pequeno embrulho nas mãos, mas não deixou que o sobrinho pegasse nele.

"Isto não é contigo", disse, puxando Joana para um canto. Depois de se certificar de que a atenção de Luís se desviara para outro lado, entregou o embrulho à noiva. "Toma, minha linda. Já te deixei ali umas porcelanas para a vossa casa, mas este é o meu presente de casamento apenas para ti. Espero que gostes."

Joana agarrou o pequeno embrulho e desfez o papel, revelando o objecto que o invólucro adornava.

"Um livro?"

"Não é um livro qualquer", disse a tia Maria, apontando para o título que encaixava o desenho de uma flor branca. "É o Livro das Noivas. Conheces?"

Joana analisou a capa, como se avaliasse o presente.

"Não."

"Foi-me mandado pela tia Paz, do Brasil. Ela disse que é muito bom."

"Ai sim?"

A tia Maria esfregou com os dedos uma rendinha da manga do vestido da noiva.

"Tiveste algum manual a preparar-te para o casamento?"

Joana encolheu os ombros.

"Não... quer dizer, apenas consultei um livro de ménage da condessa de Bassanville."

"É pouco", considerou a tia, batendo com o dedo na capa do livro que acabara de oferecer.

"Considerando que já não tens cá a tua mãe para te aconselhar, esta pode muito bem vir a ser a tua melhor prenda de casamento."

"Ah, muito obrigada."

"Não é para agradecer, é para ler. Este livro pode ser-te muito útil, minha linda. Lembra-te que uma mulher não se deve resignar a ser um objecto de luxo na casa, uma espécie de adorno. Deve ser alguém que ajuda o marido a enfrentar a vida. O Livro das Noivas explica-te como fazer isso."

Pegou no livro e abriu uma das páginas iniciais. "Ora vê o que diz aqui: «Rodeia-o sempre de respeito, de affecto, de dignidade; que o nome d'elle seja para ti um nome puro onde não possa cahir mácula.»"

A rapariga sorriu, condescendente.

"Este livro ensina-me a amar o Luís? Mas eu já o amo..."

"Não, filha. Uma coisa é o amor de namorados, que não se conhecem e se idealizam à distância; outra coisa é a vida

conjugal. O que o livro te ensina é a viver o dia-a-dia com o teu marido."

"Não estou a entender..."

A tia Maria folheou a obra e mostrou um capítulo intitulado "A roupa branca".

"Estás a ver? Como devemos arranjar a roupa? Como conseguir que o linho e o morim cheirem a flores? Como deve ser feita a entrega da roupa às lavadeiras? O livro tem todas as respostas."