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Apontou para o parágrafo final do capítulo. "«É na roupa branca», diz aqui, «que mais limpidamente se espelha a bôa administração de uma dona de casa.»"

Joana pegou no livro.

"Ah, muito bem. Realmente, parece útil."

"No Brasil, escreveú-me a tia Paz, está toda a gente a ler este manual. Ele ensina a tratar do marido ou de um filho quando um deles está doente e até mostra como separar os bons livros dos livros nocivos na biblioteca doméstica."

"Quais livros nocivos?"

A tia Maria indicou a sua prenda.

"Bem... é só leres, está tudo aí. Um livro nocivo é um livro que conta histórias pouco morais ou que estragam o bom gosto. As nossas leituras têm de ser sadias, não achas?"

"Com certeza, não há dúvida nenhuma."

"Pois essa é uma leitura sadia, minha filha. Podes ter a certeza. O Livro das Noivas ensina-te a escolher as melhores leituras, a apreciar a boa arte, a saber estar num baile, a escolher as jóias para as ocasiões, a lidar com os pobres e a ser caridosa... enfim, uma série de coisas." Pegou de novo no livro. "Tem aqui algo que me parece muito importante, deixa ca ver." Folheou a obra, à procura do extracto certo. "Aqui está: «Minhas amigas, não vos esqueçaes de que o homem é egoísta e auctoritário e de que para fazêl-o feliz, como vos

cumpre, tendes de renunciar ao doce ócio em que o vosso pensamento se balança e têl-o sempre vigilante e activo.»"

"Oh, o Luís não precisa de cuidados."

Uma voz interrompeu-as.

"Então, Joana? Vamos embora?"

Era Luís que a chamava.

"Já vou, querido." Joana voltou-se para dona Maria. "Tenho ir. Vamos agora para casa."

"Dizes tu que o Luís é diferente?"

"Tenho a certeza", confirmou ela, começando a empilhar todos os presentes numa cesta, para levar para casa. "Egoísta é coisa que ele não é, pode estar certa."

A tia Maria ergueu o dedo justiceiro.

"Isso é o que tu pensas, minha querida", sentenciou. "Não te esqueças do que eu te digo: o meu sobrinho é um homem e os homens são todos iguais."

"Oh, tia, que exagero! Francamente!"

"Eles só pensam neles próprios."

A imagem que o espelho reflectia mostrava-lhe que estava um brinco. Joana ajeitou apenas a alça da camisinha de dormir e suspirou, feliz. Passara o último mês a preparar ao pormenor a toilette da noite de núpcias, bordando com esmerado primor toda a camisinha de dormir. Tinha dado um trabalhão, pensou, mas valera a pena. Não havia qualquer dúvida de que o seu corpo resplandecia sob aquela requintada camisinha bordada, cheia de arremates, nozinhos franceses, pontos margarida e pontos atrás, todos devidamente alinhados, as linhas bem arrematadas e sem criar sombras, o richelieu em linho fino...

"Então, Joana?"

A voz de Luís vinha do quarto e trazia um timbre de impaciente expectativa.

"Já vai, já vai!", retorquiu ela.

Contemplou-se uma última vez ao espelho, admirando a perfeição que lhe cobria o corpo. Que trabalho aquilo lhe dera! Só aquele pormenor do nozinho francês, por exemplo. O cuidado que tivera ao colocar a agulha na frente da linha e ao dar uma volta com ela em torno da agulha; ou ao segurar as laçadas junto ao tecido até a puxar toda para baixo; ou ao escolher o ponto de entrada da agulha no tecido assim tão próximo do ponto de saída. Realmente, estava um primor! E o arremate?

Sim, o que dizer daquele arremate, valha-me Deus? Tivera de passar a linha por dentro de vários pontos, no avesso do tecido, para conseguir tal efeito! E depois ainda passou a trama na diagonal, de modo a obter um avesso perfeito! Jesus, o labor que tinha sido para obter tamanho requinte nos pormenores! Fora um mês daquilo, um mês de tortura às voltas com as agulhas, com as linhas e com todos os nós e pontos, mas... Virgem Maria, valera a pena!

Virou as costas e, vaidosa, lançou um derradeiro olhar apreciativo ao espelho.

Ah, estava mesmo um primor!

Saiu enfim do quarto de banho, resplandecendo como nunca na sua vida. Que lindo! Não tinha dúvidas de que Luís ficaria embasbacado. A riqueza dos pormenores e o esmero do trabalho eram de um chie verdadeiramente de arrasar.

Deslizou pelo quarto e, a transbordar de felicidade, deu dois passos e rodopiou diante do marido, como uma bailarina, exibindo no corpo aquela perfeição da arte de bordar.

"Estou linda?", perguntou.

Luís admirou-a por um breve segundo.

"Perfeita."

Acto contínuo, agarrou-se a ela e, com um movimento brusco e esfaimado, puxou-lhe o delicado vestido de noite,

rasgando-o brutalmente pelas bordas, e atirou-o para o canto do quarto.

O segundo choque veio pouco depois. Ainda combalida com a indiferença do marido pela sua obra-prima, Joana depressa se confrontou com outro problema de grande magnitude. Apesar da ânsia com que ele a envolvera nos seus braços, minutos mais tarde tornou-se penosamente claro que, por algum motivo, Luís não conseguia erguer a sua masculinidade. Persistiram ambos nos abraços e nos beijos ainda durante algum tempo, até não mais ser possível fingir que o que se estava a passar não se estava a passar.

"Eu... não sei o que tenho", balbuciou Luís, embaraçado com o que lhe sucedia, logo a ele que ainda horas antes se gabara de ser um verdadeiro touro. "Isto não... não..."

"Oh, deixa estar", murmurou ela, esforçando-se por esconder a decepção. "Não faz mal."

"Faz, sim", cortou ele, quase zangado. "Não sei o que se passa, isto nunca... enfim, não percebo."

Joana passou-lhe a mão pelo cabelo e acariciou-lhe o rosto, tentando tranquilizá-lo.

"Pronto, tem calma. Estamos um pouco nervosos, só isso." Inclinou a cabeça em direcção à porta. "Porque não vais comer alguma coisa? Vais ver que... que ficas logo melhor."

Ansiando por uma pausa, Luís aceitou a sugestão e foi à cozinha. Era a primeira vez que bloqueava no momento da verdade diante de uma mulher e, ou se enganava muito, ou sabia muito bem qual a origem do problema. Amélia! Só podia ser Amélia! O reencontro da véspera reacendera-lhe a paixão que nunca verdadeiramente se apagara; sabia agora que apenas ardera em lume brando durante os anos em que a julgara perdida. Mas só o acto de a ver já exercera um

poderoso efeito sobre ele. Tinha consciência de que, por mais que tentasse iludir-se, ele era dela e só a ela pertencia. Até o seu corpo parecia revoltar-se perante a imposição de uma outra mulher.

Confiando nos poderes da fruta bíblica, trincou uma maçã. Se a maçã conduzira Adão ao pecado, quem sabe se não poderia fazer o mesmo por ele. Mastigou a peça de fruta com vagar calculado e quando acabou regressou ao quarto e deslizou por entre os lençóis para junto do corpo quente e palpitante de Joana. Tocaram-se e abraçaram-se. Por entre os beijos e as carícias, a virilidade reapossou-se do seu corpo e com ela tomou posse do corpo da mulher.

Amaram-se com abandono, os olhos fechados e os corpos entregues à orgia das sensações. O

que Joana não sabia é que Luís cerrara os olhos para se imaginar com Amélia e que foi com Amélia que ele nessa noite verdadeiramente fez amor.

XV

A maior ironia do casamento foi o facto de ter aproximado Luís de Amélia. Acabou por ser uma evolução de certo modo natural, considerando que aconteceu por via dos cônjuges.

Com frequência Joana queria estar com a irmã, mas por vezes era o próprio capitão Branco que insistia em convidar o seu camarada de armas. O facto é que o casal Afonso se tornou visita habitual na casa dos Branco e os dois antigos namorados passaram a encontrar-se com uma assiduidade quase embaraçosa.