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Perante o inopinado evoluir da situação, nos primeiros dias Amélia esforçou-se por se manter longe da vista de Luís, invocando uma multiplicidade de pretextos: ou tinha de orientar a criada ou precisava de tratar dos filhos ou havia que ir ao mercado ou então era outra coisa qualquer. A irmã acompanhava-a, mas Amélia tinha o cuidado de manter os homens afastados.

Este distanciamento deixou Luís perturbado. Sempre que ia à casa do Sameiro sentia uma excitação surda pela perspectiva

de ver Amélia, mas uma vez lá sobrevinha a decepção. Quase nunca a via e começou a perceber que a invisibilidade da dona da casa era propositada e tinha a ver consigo. Seria possível que a sua presença lhe repugnasse? Mais do que desconfortável, essa possibilidade deixava-o triste. Para fugir ao isolamento, Luís refugiou-se na companhia do capitão, o que, aliás, parecia natural, sendo ambos camaradas no mesmo quartel. Foi assim que o visitante foi conhecendo melhor o seu rival secreto.

Mário Branco revelou-se-lhe um homem metódico e exigente, daqueles que nunca esquecem os seus deveres. Quando as visitas se prolongavam pela noite e o casal Afonso acabava por pernoitar em casa dos Branco, antes de se deitar o capitão pedia licença aos convidados e descia até ao escritório. Verificava junto à porta de entrada os gastos de electricidade desse dia e registava-os depois num livrinho preto pousado na escrivaninha. A luz de um candeeiro cujo clarão azulado tingia de sombras as paredes forradas a papel, anotava aí todos os gastos da família, mesmo os que poderiam parecer mais insignificantes. Luís percebeu que isso lhe estava na massa do sangue, era algo que emergia da sua natureza de homem disciplinado.

Ao fim de várias noites dormidas naquela casa, Luís descobriu que o capitão saía rumo ao quartel todas as manhãs à mesma hora, com o inacreditável pormenor de o fazer rigorosamente no mesmo minuto. Tão surpreendido ficou com esta constatação que comentou o assunto com a mulher.

"Isso é coisa famosa aqui em Penafiel", observou Joana, com um risinho discreto. "Ele toma sempre o mesmo itinerário. Desce aqui a rua, chega à Praça do Município e mete pela Rua Direita, onde está o jornal. Pois sabes o que faz o doutor Tomás Ferreira quando o vê passar?"

"Quem?"

"O doutor Ferreira. O director do nosso semanário, o Tempo. Estás a ver quem é?"

"Ah, sim. O que faz ele?"

"Acerta a hora!"

"Estás a brincar."

"A sério", garantiu ela. "O homem confia mais na hora de passagem do Mário à frente do jornal do que no próprio relógio!"

Apesar da relutância surda de Amélia, os casais passaram gradualmente a despender mais tempo juntos. As desculpas para a ausência da dona da casa tinham um limite para lá do qual se tornaria estranho o seu comportamento. Foi assim que a resistência da antiga namorada se foi a par e passo desmoronando, até ao dia em que o marido, durante um jantar na companhia do casal Afonso, deu inadvertidamente o passo decisivo. "Vocês já repararam como o tempo melhorou?" "É a Primavera, meu capitão", observou Luís. "O sol já espreita."

"Pois é", suspirou o anfitrião, saboreando um trago de branco verde. "Este fim-de-semana vamos para a quinta. Querem vir?" "Onde?"

"A nossa quinta, ali em Castelo de Paiva." "Não sabia que vocês tinham uma quinta."

"Temos duas até. Uma é a Quinta de Pousada e a outra é a Quinta de Vales. Mas olhe que são coisas rústicas, não têm nada de especial."

"Ah, pois não!", exclamou Amélia com um sorriso irónico. "Pois foi graças a essas duas coisas rústicas que conquistaste a minha mãe."

"Que queres dizer com isso?", admirou-se o capitão Branco. "Eu casei contigo, não foi com a tua mãe."

"Eu cá me entendo."

Fez-se um silêncio breve. Surpreendido, Luís percebeu de imediato o alcance da inesperada observação de Amélia; era como se a antiga namorada lhe tivesse lançado uma mensagem velada, lembrando-lhe que o seu casamento não fora inteiramente livre. Aquelas palavras contrastavam frontalmente com o comportamento que Amélia adoptara desde que ele se tornara visita frequente da casa, pelo que as escutou com um indisfarçável sentimento de alívio. Era como se uma luz de esperança se tivesse acendido na desesperança em que se perdia.

O capitão, porém, não entendera o comentário da mulher e olhava-a com uma expressão interrogativa. Sentindo que era necessário desviar-lhe a atenção do assunto, Luís tratou de relançar a conversa.

"O meu capitão anda a comprar propriedades?"

"Não, claro que não."

"Então como tem essas quintas?"

Mário Branco indicou com o polegar um retrato pousado na estante; tratava-se de uma fotografia antiga onde se via um casal já idoso, ele em pé de gravata negra e bigode branco, ela sentada com um grande vestido escuro, a imagem granulada já a desbotar-se com o tempo.

"Herdei-as dos meus pais, que eram pessoas abastadas e tinham muitos terrenos nesta região.

Quando eles faleceram, algumas foram para os meus irmãos e duas vieram para mim. Este sábado vamos para uma dessas propriedades, a Quinta de Pousada, ali em Castelo de Paiva." Inclinou a cabeça para os hóspedes. "Se vocês quiserem ser nossos convidados, teríamos muito gosto."

"Ah, Luís, vale a pena!", intercedeu Joana. "A quinta é uma maravilha, vais ver."

Luís lançou um olhar de relance a Amélia, tentando adivinhar-lhe a reacção à perspectiva de passar dois ou três dias com ele num espaço tão recluso. A antiga namorada manteve o rosto fechado, quase impenetrável, mas um leve movimento dos belos olhos dourados deu ao alferes o reconfortante sinal que procurava.

"Muito bem", decidiu naquele instante. "Contem connosco."

Cruzaram o Douro na estreita ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, terra assim chamada por ser justamente o local onde o Douro e o Tâmega confluíam. Do alto da ponte admiraram as duas estradas de água a convergir à esquerda, a união de ambas a formar um vigoroso caudal que passava por baixo da ponte e se perdia no horizonte à direita, em direcção ao Porto.

Uma vez na outra margem subiram a encosta pela estrada serpenteada, de um lado a verdura em socalcos, do outro a paisagem aberta para o grande rio. Mário ia ao volante, com Luís ao lado e as mulheres atrás, apertadas com as três crianças. Na borda da estrada apareciam esporadicamente casas de pedra ou muros rústicos, como megalitos embrenhados na verdura, até que, já lá no alto, o automóvel largou o caminho principal e meteu por um trilho que o conduziu a um portão estreito.

"Chegámos!", anunciou o capitão.

Para lá do portão, Luís deparou-se com um terreno inclinado pela encosta verde e castanha do monte, a vasta correnteza prateada do Douro a mover-se lá em baixo, enérgica quando vista de perto, plácida àquela distância. Toda a

propriedade estava coberta de vinhas, à excepção da grande casa de pedra assente em forma de L e do belo espigueiro mesmo em frente.

A chegada dos proprietários e dos convidados desencadeou um frenesim na quinta. Viam-se crianças a correr de um lado para o outro e da confusão emergiu um vulto corpulento.

"Chico!", guinchou Joana.

As duas irmãs foram ter com ele e Luís ficou a observá-los com sentimentos contraditórios; aquele rapaz era supostamente irmão delas, mas sabia que não se tratava de um irmão verdadeiro, antes de uma criança abandonada que a mãe das raparigas adoptara. Mais do que isso, aquele moço de feições grotescas tinha-se revelado uma espécie de homem de mão de dona Beatriz, como Luís descobrira à sua própria custa. Duvidava que alguma vez se viesse a habituar à presença de Francisco. A vantagem, pensou, é que aquela figura era quase invisível.