"Lembras-te dele?"
"Não, nem por isso. Ele é, na minha memória, um mero vulto." Torceu a boca e adoptou uma pose pensativa. "A única coisa de que me lembro é, aos seis anos, de o ouvir a tossir.
Tossia, tossia, tossia, aquilo fazia impressão. Parecia
que os pulmões lhe iam sair pela boca, coitado. Até que um dia a minha mãe veio ter comigo e disse-me que ele tinha ido para o céu."
"Ainda te lembras da cara dele?"
Ela baixou a cabeça.
"É horrível, não é? Só me lembro dele pelas fotografias que a minha mãe guarda no quarto."
"E como era?"
"Oh, bonito, claro."
Luís fez beicinho.
"Mais do que eu?"
Amélia riu-se.
"Bem... tenho de pensar nisso", devolveu, diplomática. "Sabes, a minha mãe diz que os antepassados do papá vieram de Itália. E, não sei se já te disseram, mas os italianos..."
"Ai sim? Pois o meu pai tinha galegos lá para trás."
"Não me digas! E ainda tens nome galego?"
"Bem... quer dizer, o meu nome completo é Luís António Afonso. O Afonso vem de Alonso, era de um trisavô mas foi aportuguesado..."
"Ora, batatas! Que eu saiba, o sangue italiano é mais chie do que o galego!"
"Pois sim", assentiu Luís, sem vontade de entrar numa competição peloo pedigree internacional dos antepassados. "Quando morreu o teu pai?"
"Após a guerra, meses depois de ter voltado para casa. Foi em 1920, já lá vão nove anos."
"Portanto, tu ficaste filha única."
"Claro que não."
Ele arregalou os olhos.
"Tens uma irmã?"
"Tenho, pois. É três anos mais nova do que eu."
"Ai é? Mas eu ainda não a vi."
"É porque não vive cá. Está em casa do padrinho, que enviuvou. Mas a minha mãe quer trazê-la no próximo ano para Bragança."
Luís assentiu com a cabeça.
"Hmm... sim senhora, muito me contas", disse. "E irmãos?"
"Não... quer dizer, sim."
Ele sorriu.
"Não, sim. Em que ficamos?"
"Tenho uma espécie de irmão."
"Mau, não entendo nada."
"Foi um ano depois de a minha irmã nascer", explicou Amélia. "O meu pai tinha partido para a França e a minha mãe andava muito desorientada. Nessa altura, o padre Nogueira veio ter com ela e disse que tinham abandonado um bebé lá na igreja. A minha mãe foi lá vê-lo e... e ficou com ele."
"E o que disse o teu pai quando voltou?"
"Não ficou lá muito contente..."
Luís soltou uma gargalhada.
"Aposto que não. Como se chama o miúdo?"
"A minha mãe chamou-lhe Francisco. O Chico tem onze anos, mas um corpo de homenzinho, havias de ver. Tem ar de brutamontes. A minha mãe chama-o sempre que é preciso carregar qualquer coisa."
"E a tua mãe? Depois da morte do teu pai, não voltou a casar?"
Amélia fez um ar indignado.
"A minha mãe? Casar?" Ergueu o dedo, como quem emite uma sentença. "Pois fica sabendo que, na minha família, só há mulheres de um único homem." O dedo estremeceu.
"De um único homem."
IV
O carro de bois avançava devagar pela rua, arrastando um carregamento de azeitonas negras, tão reluzentes que pareciam pérolas. O agricultor que conduzia o carro seguia à frente, enérgico e transpirado, as mãos a puxarem a correia que guiava a direcção do animal.
"Uga! Uga!", repetia o homem, incentivando o boi. "Para a frente, vamos! Arriba!"
Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso.
Logo que o carro de bois passou, Luís cruzou para o outro passeio em ziguezague, evitando os excrementos de animais que se acumulavam pela via.
Foi então que a viu.
Amélia vinha a sair da mercearia a carregar um cesto de verga e nunca como nesse instante lhe pareceu tão adorável. Ainda nessa manhã de sábado a tinha encontrado nas aulas, aliás vira-a uma hora antes a sair do liceu, mas agora andava sem a bata escolar e adquirira novo brilho. Trazia um vestido
branco com flores vermelhas, um lenço de seda púrpura aninhado ao pescoço, as saias perigosamente curtas a tombarem logo abaixo do joelho; trajes sem dúvida atrevidos, de uma elegância condenada nos púlpitos das igrejas de todo o mundo civilizado.
Sem se conter, Luís deu dois saltos na sua direcção.
"Olá."
Ela estacou, admirada.
"Oh", exclamou. "Então? Também vens às compras?"
"Eu não. Vinha a passear por aqui." Contemplou-lhe o vestido com ar apreciador. "Hoje estás toda chique."
Ela baixou a cabeça e mirou o seu vestido branco, rodando as ancas para fazer a saia rodopiar.
"Achas? Comprei-o no ano passado, quando fomos ao Porto. Dei com ele numa vitrina da Cedofeita."
"É janota. Mas essa saia logo abaixo do joelho, não achas que ela... enfim..."
"Ela o quê?"
"Não será um pouco curta de mais?"
"Ora! É a moda!"
"Mas aqui em Bragança, não sei se concordas, parece-me um pouco arrojada." Girou o rosto em redor. "O pessoal não te lança olhares?"
Amélia soltou um risinho.
"Ui, nem imaginas! Havias então de ver o padre Pintado! Ainda esta manhã o encontrei e ele deu-me logo um sermão!"
"Olha quem!"
"Chamou ao vestido uma indecência, uma tentação do Demónio, e até citou o arcebispo de Nápoles!"
"Quem?"
"O arcebispo de Nápoles, vê lá tu! Disse que o arcebispo responsabilizava estas saias pelo terramoto em Amalfi!"
Foi a vez de Luís se rir.
"Olha que se calhar tem razão." Lançou-lhe um novo olhar para as saias, mas desta vez com pura malícia. "E tu, assim vestida, és bem capaz de provocar um terramoto por aqui."
"Pateta!" Amélia virou-se para trás e procurou o relógio de pêndulo pregado na parede da mercearia. "Ai, já é quase uma hora. Tenho de me despachar."
"Estás com pressa?"
Ela ergueu o braço e exibiu as compras, de onde sobressaíam as verduras.
"É a minha mãe. Está à espera da salada para acabar o almoço."
Luís inclinou-se para o cesto.
"Deixa estar, eu ajudo-te a levar o barreleiro."
"Só um bocadinho", disse ela, entregando-lhe as compras e retomando a marcha pelo passeio.
"Quando chegarmos perto de casa vais-te embora, está bem?"
"Porquê? Qual é o problema?"
"Se a minha mãe me vê com um rapaz, mata-me."
"Ena, que mãe mais bruta."
"Ai, nem imaginas. É uma autêntica polícia."
Luís endireitou-se e fez um ar empertigado.
"Achas que não ia gostar de mim?"
Amélia riu-se.
"De ti? Hmm... não sei. És rico, porventura?"
"Não sou pobre."
"Mas não sei se és o que ela espera. A minha mãe cismou que eu estou reservada para o filho de um homem rico, daqueles grandes capitalistas que aparecem nas revistas."
"E o que importa isso? Não é com ela que vou casar."
A rapariga fez um ar provocador.
"Então é com quem?"
Luís engoliu em seco. Não estava à espera que Amélia conduzisse as coisas naquela direcção e aquele não era certamente o momento nem o sítio adequado para irem mais longe do que já tinham ido.
"É... é com quem tiver de ser."
"Ah."
Caminharam alguns minutos em silêncio, ele da parte exterior do passeio a carregar o barreleiro, ela no interior a fitar o chão. A conversa tocara inadvertidamente num ponto sensível e ambos tacteavam agora terreno inexplorado.
Já se conheciam havia um mês e meio e tinham-se habituado aos encontros nos intervalos das aulas. Luís ardia de paixão, cada minuto acordado era ocupado por ela, cada momento a dormir era sonhado com ela; sentia-se ansioso quando não estava no liceu e apenas em paz quando se lhe juntava. Dir-se-ia que vivia exclusivamente para aqueles encontros; todo o resto do tempo era consumido num tormento, um doce suplício que apenas se atenuava quando se entretinha a recordar o que haviam dito um ao outro ou a planear temas para as próximas conversas.