XVI
"No próximo sábado voltamos cá e ficamos uma semana inteira."
Amélia contemplava da janela um dos jornaleiros a juntar palha para as mulas e as palavras do marido deixaram-na petrificada.
"O quê? Uma semana inteira?"
"Sim. Vamos começar os preparativos para as vindimas e eu tenho de andar por cá."
"Tu estás doido?"
O capitão Branco possuía duas quintas e, com a chegada da Primavera, os fins-de-semana passaram a ser vividos alternadamente em cada uma delas. Umas vezes iam para a Quinta de Pousada, outras seguiam para uma propriedade ainda maior, a Quinta de Vales, situada em Cadeado, Paços de Sousa.
Foi em Vales que pernoitaram nesse dia. A propriedade era dominada por uma enorme casa de forma circular, com um
pátio no meio; parte do solar ficara reservada aos aposentos dos proprietários, onde o casal se encontrava agora, e o resto estava dividido por lagares, adegas e cortes de gado, ou entregue às várias famílias de caseiros e a outros homens que trabalhavam a terra, entre eles os jornaleiros, encarregados dos jardins e que ajudavam nas vindimas e noutras tarefas pontualmente necessárias, e os moços, rapazes incumbidos das ceifas, de tratarem do gado e de levarem a cabo todo o tipo de trabalhos pesados que a manutenção da propriedade requeria.
Trabalho era coisa que não faltava por ali, uma vez que a quinta, para além das vinhas e de toda a cadeia de produção de vinho, dispunha ainda de campos de milho e de centeio, para além de outros produtos agrícolas. Daí que o capitão Branco optasse com mais frequência por vir para aqui.
Dizia que precisava de seguir os trabalhos, mas a verdade é que apreciava o labor do campo.
O problema é que Amélia gostava mais da tranquilidade que encontrava na outra propriedade e a escolha tornou-se objecto de acaloradas discussões entre o casal. As divergências não eram muito graves enquanto se tratava de ir a um lado ou outro num mero fim-de-semana, mas naquele momento o capitão punha uma hipótese diferente. O que estava agora em questão era instalarem-se na Quinta de Vales durante uma semana inteira, possibilidade que deixou a mulher fora de si.
"Não posso deixar de vir a Vales", argumentou ele, tentando parecer razoável. "Há muito trabalho para fazer e eu preciso de estar cá para coordenar as coisas. Senão, já se sabe como é: patrão fora, dia santo na loja."
"Eu é que não tenho culpa", insistiu Amélia. "Saio da cidade justamente para ficar tranquila, mas aqui em Vales isso é impossível. Se é para andar no meio da confusão, mais vale ficar em Penafiel."
"O que queres que eu te faça?", perguntou o marido, abrindo os braços num gesto de impotência. "O trabalho tem de ser feito..."
A mulher apontou lá para fora, indicando o jornaleiro que retirava palha de uma carroça.
"Para ti este trabalho é diversão, mas para mim é um verdadeiro suplício. Ainda se fosse um fim-de-semana, vá lá, aguentava. Mas... uma semana inteira?"
O capitão Branco sentou-se na cama e ficou a tamborilar com os dedos na mesinha-de-cabeceira, matutando no assunto. Ele queria vir para Vales, ela não. Podia forçá-la, claro, mas depois teria de a aturar. Como resolver o problema?
"Ouve, vamos fazer assim", disse, confrontado com a solução óbvia. "Eu tenho mesmo de vir para Vales toda a semana, isto não pode ficar entregue aos caseiros. Mas, se não queres vir, então fica em Penafiel."
Amélia inclinou a cabeça e curvou a boca, numa expressão de desagrado.
"Então tu vens para o campo divertir-te e deixas-me abandonada em Penafiel?"
Ele fitou-a, baralhado.
"Não é isso que tu queres?"
"O quê? Ficar em Penafiel? Claro que não! Prefiro ir para Pousada."
"Então porque não vais?"
"Sozinha?"
"Com os miúdos, claro."
"Eu quero ficar tranquila, Mário, mas não planeio tornar-me uma eremita. Já viste o aborrecido que é eu e os miúdos sozinhos em Pousada? Morríamos de tédio!"
"Está lá o teu irmão."
"Ah, sim! Há-de valer-me de grande coisa, falador como ele é. Fico a vê-lo a torcer o pescoço às galinhas ou a degolar os porcos. Está-se mesmo a ver que vai ser divertido..."
O capitão coçou o queixo, absorto no problema.
"E porque não levas a tua irmã?"
"Já sabes que ela não vai sem o marido."
"Então ela que leve o marido."
"Leve o marido como? O Luís está no quartel a tratar da bicharada. Sabes muito bem que ele não se pode ausentar assim sem mais nem menos."
Os dedos do capitão voltaram a deslizar pensativamente pelo queixo.
"Eu trato disso", disse ele. "Há em Castelo de Paiva umas tarefas que requerem o trabalho de um veterinário e eu vou ver se arranjo maneira de o dispensarem do quartel por uma semana. Além do mais, ele precisa de treinar o cavalo que apadrinhou lá no quartel."
"É essa a tua ideia? A Joana e o Luís irem comigo para Pousada?"
"Sim", confirmou o marido, com esperança de ter encontrado a solução para o problema.
"Tenho a certeza de que eles não se importam nada e eu fico com as mãos livres para vir a Vales tratar do que é preciso. Parece-te bem assim?"
Amélia sorriu pela primeira vez nesse dia.
"É perfeito."
Logo que na semana seguinte chegaram à Quinta de Pousada, Luís percebeu que algo havia mudado em Amélia. O distanciamento que a antiga namorada cultivava desde que ele começara a frequentar a sua casa parecia ter dado lugar a uma subtil aproximação. Não era uma postura directa ou óbvia,
mas uma maneira de estar, um estado de espírito, uma disposição de certo modo insinuante.
Apercebeu-se da mudança logo no primeiro dia em Pousada, quando estava sentado nas escadas do casarão a admirar o espigueiro. Sentiu uma presença à esquerda e virou rapidamente a cara, surpreendendo-a a mirá-lo. Logo que se viu descoberta, Amélia afastou os olhos e simulou indiferença. O incidente repetiu-se mais duas vezes, sempre com ela a procurar disfarçar o seu interesse. Mas disfarçava mal e, à medida que o tempo ia passando, tornou-se gradualmente claro que, naquele ambiente em que todos viviam perto uns dos outros, Amélia sentia crescentes dificuldades em reprimir os sentimentos.
Passaram assim os dois primeiros dias, entregues a este jogo de olhares dissimulados. Mas os acontecimentos precipitaram-se ao pequeno-almoço do terceiro dia.
"Estou farta de estar aqui fechada", queixou-se Joana enquanto barrava compota numa tosta. "E
que tal se descêssemos até ao rio?"
"Sim!", concordaram em coro as duas crianças mais velhas, as bocas lambuzadas.
"Eu não posso", avisou logo Luís. "O Relâmpago precisa de treino e vou aproveitar a manhã para trabalhar com ele."
"Eu não posso ir", disse Amélia, olhando de relance para a loiça suja. "Há aqui coisas para fazer."
"Oh, mãe!", implorou o filho mais velho, puxando-lhe o braço. "Anda lá. Vamos ver os peixinhos."
"Já disse que não posso ir." Fez sinal à irmã. "Porque não vão vocês com a tia?"
"Podemos, tia?"
Joana encolheu os ombros.
"Porque não?"
Partiram dez minutos depois e deixaram Amélia e Luís inopinadamente sós. Ou talvez aquele momento inesperado não fosse tão inesperado quanto isso. Desde que o capitão o convidara para ir passar aquela semana a Pousada que Luís alimentava o secreto desejo de se apanhar a sós com Amélia. É certo que sempre pensara que, quando isso acontecesse, o desejo se dissolveria em fantasia e a realidade acabaria por se impor, mas logo que se viu na quinta percebeu que não seria assim. Se alguma coisa acontecera nesses três dias fora apenas o intensificar do desejo por Amélia.