"Não quero."
Sacou outra nota igual.
"Quarenta escudos, então."
"Nem que fossem dez contos", atalhou o caseiro com desdém, enquanto afastava as notas que lhe eram estendidas. "Não quero o seu dinheiro. O que eu quero é estar de bem comigo, com a minha família e com Deus."
"Mas qual é o problema? Você fica com o dinheiro e ninguém sabe de nada. Qual é o mal?"
O caseiro indicou o seu olho direito.
"Deus tudo vê e tudo sabe. Pode mais ninguém saber que eu recebi o dinheiro e me calei, mas Deus sabe." Apontou para cima. "Deus exige a verdade e será a verdade que eu direi."
O homem voltou as costas de novo, dando por encerrada a conversa, e recomeçou a aparelhar a mula.
Impotente, Luís voltou-se para trás e trocou com Amélia um olhar de desânimo. Foi nesse instante que Francisco deu dois passos em frente, empurrou Luís para o lado e chegou junto do caseiro.
"Ó Tino."
O homem manteve o corpo virado para a mula, mas voltou a cabeça e espreitou sobre o ombro.
"O que é?"
"Se contas alguma coisa, mandam-me embora aqui da quinta."
O caseiro soltou um riso seco e encolheu os ombros.
"Tanto melhor."
"Tanto melhor, o quê?"
Tino parou de fazer o que estava a fazer e virou-se finalmente para Francisco, que era dois palmos mais alto do que ele. Olhou para os pés do rapaz diante dele e subiu devagar os olhos até ficar com a cabeça voltada para cima.
"Tanto melhor mandarem-te embora", disse por fim, num tom de profundo desprezo.
"Não estás aqui a fazer nada. Ninguém gosta de ti, és um merdas que para aqui anda. Até os miúdos têm medo quando te vêem. Chamam-te mostrengo."
Num acesso de fúria, Francisco pegou no caseiro pelos colarinhos e puxou-o para si, deixando-o pendurado, os pés no ar.
"Repete lá isso."
O homem riu-se. '
"Ui, que medo! Vais bater-me, vais?"
"Tem calma, Chico", disse Luís lá atrás. "Assim não vamos resolver nada."
Mas o rapaz nem parecia ter ouvido.
"Repete lá isso."
Tino cuspiu o cigarro para o chão e libertou o fumo no rosto do seu adversário.
"Tu ouviste muito bem. Tens a mania que és mau, mas a mim não me acagaças, ouviste?
Aqui o Tino é teso. Quando eu chegar a Penafiel, vou direitinho ter com o patrão e conto-lhe tudo. Tudinho. Depois quero ver como é."
Francisco colou o nariz ao nariz do caseiro e carregou os olhos.
"Não contas nada."
"Ai não? E como é que me vais impedir?"
O rapaz pôs o braço direito em gancho em torno da cabeça de Tino, de forma a que a mão lhe agarrasse a cara, e com o esquerdo manteve-o imobilizado.
"Assim."
Puxou nesse instante com inesperada brutalidade, torcendo a cabeça do caseiro. Ouviu-se um estalido brutal, como o crac seco de um tronco a partir-se numa árvore. Os pés pendurados agitaram-se num espasmo e o corpo imobilizou-se, a cabeça voltada para trás numa posição impossível, os olhos brancos, a língua roxa ao canto da boca.
Amélia gritou, horrorizada.
Com um movimento de desprezo, Francisco atirou o corpo para o chão. O caseiro ficou estendido como um espantalho partido, a barriga para cima, o rosto enterrado na lama, os pés ainda a tremerem num derradeiro estertor.
"Agora já não conta a ninguém."
Todo o inesperado da situação deixou Luís pregado ao chão, vendo e não acreditando no que via, experimentando um sentimento de irrealidade, como se tudo aquilo não passasse de um pesadelo, pouco plausível era verdade, mas incrivelmente realista.
As palavras de Francisco, porém, tiveram o condão de o despertar da letargia em que havia mergulhado. Acto contínuo, saltou para a frente e ajoelhou-se diante do corpo inerte estendido na lama. Rodou devagar a cabeça imóvel do caseiro e fez uma careta preocupada ao ver-lhe os olhos fixos. Aquilo não era bom. Premiu o dedo sobre a carótida e procurou a pulsação, mas não a sentiu.
Inclinou a cabeça sobre o coração e pôs-se à escuta.
Nada.
"Está morto", constatou, endireitando-se.
Amélia mostrava-se siderada. Tinha as mãos a tapar a boca e não conseguia tirar os olhos do cadáver.
"E agora? E agora?"
Luís ergueu-se lentamente e encarou Francisco.
"Tu tens a noção do que fizeste?"
"Calei-o."
"Lá isso é verdade", concordou, olhando por instantes para o corpo estendido atrás dele. "Lá calado está ele, não há dúvida nenhuma. Só que, para resolver um problema complicado, criaste um problema ainda maior. A bem dizer, muito maior."
"Ele não me devia ter chamado mostrengo."
"Tens razão", voltou a assentir Luís. "Mas não era caso para o matares, pois não? O que vais agora dizer à polícia?"
Francisco fungou e não respondeu, os olhos sempre pousados no cadáver do caseiro.
"Vais chamar a polícia?", questionou-o Amélia.
A pergunta deixou Luís surpreendido.
"Quer dizer... ainda não pensei nisso. Mas é evidente que a polícia vai aparecer. Mais tarde ou mais cedo, eles vão surgir aí. Ou pensas que se mata uma pessoa e continua tudo na mesma?"
Ainda em estado de choque, Amélia sentia enormes dificuldades em raciocinar.
"Tens razão. A polícia vai aparecer."
"E irá começar a fazer perguntas", acrescentou Luís. "Muitas perguntas, mesmo. Quem o matou, porquê, o que aconteceu... tudo isso eles vão querer tirar a limpo."
Amélia indicou o irmão adoptivo com a cabeça.
"Achas que o vão prender?"
"O que achas tu?"
A amante manteve-se calada e o irmão adoptivo também.
"Diz-me, o que achas tu?", insistiu Luís, enervado por só ele estar a ver o óbvio. "Pensas que eles chegam aí, percebem que o Francisco matou o Tino e dizem: ó, coitadinho, vamos deixá-lo em paz, se calhar foi sem querer. Achas que vão dizer isso?"
"Tens razão."
"O Chico vai para a choça."
"Oh, não!"
"E se calhar nós também."
"Nós?"
"Claro. O adultério é um escândalo, mas o assassínio é um crime. Um grande crime. Se fores a ver bem, nós viemos aqui para tentar calar o Tino e o Francisco calou-o de facto. Tínhamos um bom motivo e dispusemos da oportunidade." Indicou o cadáver. "Quem é que vai convencer o juiz de que não tivemos nada a ver com isto?"
Posta perante a real magnitude do novo problema, Amélia escondeu a face com as mãos.
"Meu Deus! Meu Deus, meu Deus! Estamos perdidos! O que vai ser de nós, Virgem Santíssima?" Soluçou. "O que vai ser dos meus filhos?" Mais soluços. "No que nos fomos meter, Santo Deus? Que loucura é esta? Como é que isto chegou a este ponto?"
Vendo-a entrar em pânico, Luís aproximou-se e envolveu-a nos braços, já arrependido da crueza com que apresentara os factos.
"Pronto, pronto", murmurou. "Não te preocupes, tudo se há-de resolver, vais ver."
Amélia encarou-o, buscando esperança onde já a perdera.
"Como é que tudo se há-de resolver? Tu próprio o disseste: nenhum juiz vai acreditar que não tivemos nada a ver com... com isto. Como é que se vai resolver? Diz-me: como?"
"Eu sei o que disse. Mas, se nós explicarmos tudo muito bem explicadinho, vais ver que a polícia e o juiz percebem. Tem calma, não te enerves."
Vendo que nada mais lhe restava fazer, Francisco saiu do local e dirigiu-se ao casarão. Luís ficou a tentar confortar
Amélia, mas na realidade nem ele próprio acreditava que fosse possível escaparem todos à cadeia.
Falava por falar, para a acalmar, para a ajudar a preparar-se para os tempos complicados que já antevia. Não era difícil, aliás, prever a sucessão de acontecimentos que seria em breve desencadeada. O morto seria encontrado, a polícia interrogá-los-ia, provavelmente seriam detidos, haveria um escândalo, seguir-se-ia o julgamento, depois a condenação e a destruição de todas e de cada uma das vidas a que os três estavam ligados. Em suma, as coisas dariam uma grande volta, e para muito pior.