Enquanto ia prevendo os acontecimentos, Luís reparou que Francisco saía do casarão com um objecto às costas. Parecia um saco. De início não deu importância ao assunto, mais preocupado com Amélia e com o prenúncio do que aí vinha. Mas, à medida que ele se aproximava, começou a interrogar-se. Onde iria Francisco? Para que raio quereria ele o saco? Seria possível que planeasse meter o caseiro lá dentro? Que diabo teria na cabeça?
Caminhando com uma despreocupação desconcertante, Francisco aproximou-se dos dois e parou quando chegou ao local onde eles se encontravam.
"Vou-me embora, senhora."
Amélia, que chorava baixinho encostada ao peito de Luís, afastou o cabelo e olhou para o irmão adoptivo.
"Onde vais?"
"Vou fugir."
A resposta deixou-a abismada.
"Vais onde?"
"Vou fugir."
"Mas... mas tu não podes fazer isso."
"Ai não? Então faço o quê? Fico aqui à espera que me venham prender?"
"Bem... temos de enfrentar a justiça, não achas?"
"Para quê?"
A pergunta era embaraçosamente certeira. Para quê enfrentar a justiça? Que fim serviria tal sacrifício? Ficaram os três a olhar-se, sem saberem o que dizer.
Percebendo enfim que aquela era uma despedida, Amélia soltou-se do amante e abraçou-se ao rapaz que a mãe adoptara, afagando-lhe os cabelos com os dedos.
"O Chico! Desculpa! Desculpa tudo isto... toda esta confusão! Se eu tivesse juízo..."
"Fui eu que o matei. A senhora não tem de pedir desculpa."
Amélia fungou e fitou-o nos olhos.
"Tens a certeza do que estás a fazer?"
"Não."
Luís meteu a mão no bolso.
"Ele está a fazer a única coisa que pode fazer", observou, retirando a carteira. Tirou todo o dinheiro que lá tinha e entregou-o ao rapaz. "Toma. São cento e quarenta escudos, é tudo o que trago neste momento. Não é muito, mas sempre vai dar jeito."
Sem dizer uma palavra, Francisco aceitou o dinheiro e guardou-o no bolso. Depois beijou Amélia no rosto, pegou no saco e começou a andar em direcção ao portão.
"Para onde vais, Chico?", perguntou Amélia, ainda sem acreditar na rapidez com que os acontecimentos se haviam precipitado. "Para onde vais tu?"
"Para onde não me encontrem."
E desapareceu para lá do portão sem olhar uma única vez para o passado que deixava para trás.
íi^> Parte Três
1936
Não creias nele, porque tudo é
nada
I
O rapaz perfilou-se à cabeça da fila, nu, plantado diante da secretária do oficial. O
alferes Luís Afonso olhava para a rua pela janela, apreciando o ar pacato da cidade. Já se habituara a ela, de tal modo que contemplava com uma certa familiaridade as fachadas dos edifícios e das lojas da Avenida Sacadura Cabral e o aspecto prazenteiro que o Campo do Conde de Torres Novas apresentava, mesmo em frente ao quartel.
Suspirou e olhou enfim para a ficha pousada na mesa.
"Nome?", perguntou, mirando a ficha.
"Aurélio do Carmo Silva."
O oficial miliciano levantou a cabeça, segurou os olhos do recruta e arregalou uma sobrancelha, com ar de quem não gostou da resposta.
"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes", corrigiu Luís, acentuando o meu alferes.
O rapaz pareceu ter-se assustado e ficou ainda mais hirto.
"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes."
O alferes veterinário pegou na caneta e tomou nota do nome na ficha.
"Data de nascimento?"
"Uh...", atrapalhou-se o rapaz. "Não sei, meu alferes."
O oficial mirou de novo o recruta, dessa vez com mais atenção. Tinha um ar rude, as mãos grosseiras, as unhas encardidas de preto; era um moço do povo, viera do campo e provavelmente os pais não o tinham registado logo à nascença.
"Em que ano nasceu você?"
"Em 1920, meu alferes. A minha mãe disse-me que foi na altura das colheitas, mas não sei o dia."
Luís voltou a levantar a sobrancelha.
"Não sei o dia, o quê?"
"Não sei o dia, meu alferes."
"Hmm", murmurou o oficial, debruçando-se mais uma vez sobre a ficha. Escrevinhou o ano, mas deixou em branco os espaços relativos ao dia e mês de nascimento.
"Naturalidade?"
"Faz favor de dizer, meu alferes?"
"Naturalidade?"
"Como diz, meu alferes?"
"Onde nasceu você, rapaz? Aqui em Penafiel?"
"Ah! Nasci na casa da minha avó, mesmo ao pé do riacho, ali em Guilhufe, meu alferes."
No momento em que Luís ia a anotar a informação, o telefone negro pousado na secretária começou a tocar com um riiiiiing aflitivo. O oficial pousou a caneta e atendeu.
"Está sim?"
Uma voz metálica, quase eléctrica, respondeu-lhe do outro lado.
"Olá, Luís, como vai isso?"
Era o capitão Branco.
"Estou aqui a atender os novos recrutas", disse, olhando de relance para o homem nu à sua frente. "Preferia ir treinar o Relâmpago, mas o coronel Silvério insiste em pôr-me aqui nestas funções..."
"Nem tem ele outro remédio. O Porto ainda não nos mandou nenhum médico, de modo que tem de ser você a tratar das provas de aptidão." Pigarreou. "Por falar no coronel Silvério, veio aqui ter comigo o oficial de operações, o alferes Boavida, a convocar-nos para uma reunião esta tarde."
"A convocar quem?", perguntou Luís, convencido de que havia escutado mal a última frase.
"A nós."
"A mim também?" -
"Sim."
O veterinário coçou a cabeça, surpreendido.
"Mas o que raio me quer o nosso comandante?"
"O alferes não me explicou. Disse-me apenas que se tratava de um assunto melindroso e confidencial. Temos de estar no gabinete do nosso coronel às três da tarde."
Luís desligou e permaneceu um longo momento a olhar pela janela, meditativo, interrogando-se sobre que assunto seria esse que tanto melindre suscitava e para que raio o quereriam envolvido nele. Haveria novidades sobre Francisco? Desde o crime na Quinta de Pousada que ele e Amélia viviam em sobressalto. Quando a GNR aparecera para investigar a morte do Tino, a versão que apresentaram foi que tinham encontrado ali o corpo quando saíam do casarão depois do pequeno-almoço, tendo ainda constatado que Francisco havia desaparecido. Era, na verdade, a única coisa que poderiam dizer. Se revelassem a verdade, ela seria demasiado suspeita. Além do mais, forçá-
los-ia a explicar como tudo
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tinha começado e tal explicação pertencia ao domínio do inconfessável. Com que cara iriam dizer que tudo acontecera porque o Tino os havia apanhado em flagrante no curral?
A versão que apresentaram revelou-se de longe a mais simples e inatacável, mas tinha um importante senão: se Francisco viesse a ser apanhado, seria uma catástrofe. O irmão adoptivo de Amélia não estava inteirado da versão que ambos acordaram para relatar os acontecimentos, pelo que depressa a polícia notaria as contradições que inevitavelmente iriam emergir durante o interrogatório. Era por isso imperativo que Francisco nunca viesse a ser capturado. Mas como diabo poderiam eles ter a certeza de que tal jamais aconteceria?
O dia-a-dia dos dois amantes havia-se assim tornado um inferno, sempre com receio de que rompesse a notícia da detenção de Francisco. E agora o coronel Silvério, que era nem mais nem menos que o comandante do regimento, queria falar com ele! E não era só com ele: era também com o marido de Amélia! Pior augúrio não poderia haver. De certeza que havia novidades, de certeza que a polícia tinha...