"Meu alferes", disse uma voz.
O oficial despertou dos seus pensamentos e, como se regressasse de um país longínquo, libertado da letargia pelo estalar dos dedos de um qualquer hipnotizador, olhou para o recruta nu e viu-o hirto à sua frente, uma expressão intrigada desenhada nos olhos.
"O que é, rapaz? Tens frio?"
"Uh... não, meu alferes."
"Então? E vergonha de estares como vieste ao mundo?" Sorriu. "Não te preocupes." Pegou no formulário e acabou de o preencher. "Daqui a um bocado passas pelo dispensário com este papel que te vou dar e eles entregam-te roupa
interior, lâmina de barbear e pincel, dois fatos de cotim, botas e alpergatas." Ergueu a cabeça e apontou para o recruta com o dedo. "Mas primeiro vais ter de tomar banho, ouviste? Cheiras mal, tresandas a bosta de boi."
"Sim, meu alferes." Hesitou. "Mas eu queria mesmo era saber outra coisa, meu alferes."
"O que é?"
O recruta indicou com o queixo o telefone pousado sobre a secretária.
"Eles falam mesmo de lá, é? Ou isso é conversa para nos enganar?"
O movimento na praça diante dos Paços do Concelho era lento, apesar de ser o centro da cidade.
Alguns homens vestidos de preto ou castanho-escuro concentravam-se diante do Café Lima e do Café da Sociedade, locais que Amélia sabia serem-lhe interditos. Eram antros de álcool, tabaco e bilhar, zona exclusiva para homens. Passou por isso pelos cafés em passo lesto, sem sequer espreitar para o interior, como convinha a uma senhora da sua condição.
Entrou na Farmácia Oliveira e encomendou as aspirinas e o xarope Bromil que lhe tinham sido receitados por Luís. Desde a tragédia que fora a morte do Tino que Amélia não se sentia bem.
Sofria de insónias frequentes e, quando acabava por adormecer, era acossada por sucessivos pesadelos relacionados com o que acontecera. Umas vezes sonhava que o marido a apanhava com Luís no curral de Castelo de Paiva; outras vezes imaginava que era a ela que Francisco partia o pescoço. Mas os sonhos mais frequentes eram aqueles que envolviam a polícia a algemá-la ou o juiz aos gritos a condená-la por assassínio e adultério ou o Tino a reaparecer vivo e a clamar por justiça.
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JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS
Ao sair da farmácia sentiu uma mão a agarrá-la no braço e teve um sobressalto.
"Preciso de falar contigo."
Era Luís.
"Ai, Luís, que susto!", exclamou, pousando a mão no peito sobressaltado. "O que estás aqui a fazer?"
"Temos de conversar."
Amélia olhou em redor, aflita.
"Não pode ser aqui, à frente de toda a gente. Vão comentar."
"Eu sei, mas tenho urgência em falar contigo."
A amante indicou com a cabeça a grande igreja do outro lado da rua, mesmo no meio da praça.
"Vamos ali à Misericórdia, estamos mais tranquilos."
Cruzaram a estreita Rua Serpa Pinto aparentando o ar mais natural do mundo. Para reforçar essa aparência, Luís indicou o embrulho que Amélia tinha nas mãos e entabulou conversa.
"O que é isso?"
"São as aspirinas e o xarope que me receitaste. Fui agora à farmácia aviar a receita."
"Tens tido dores de cabeça?"
"Ainda esta manhã."
"Então toma as aspirinas depois de comeres alguma coisa. E os pesadelos?"
"O costume. Esta noite sonhei que me tinham atirado para os calabouços e que não conseguia andar na cela porque havia ratazanas por toda a parte."
"Usa o xarope para isso."
Amélia tirou o frasquinho do embrulho.
"Não sabia que havia medicamentos para os pesadelos."
Luís pegou no frasco e abanou-o, como se assim conseguisse testar o líquido no interior.
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"Na verdade, nem sei se isto funciona. Mas recebemos no quartel uns jornais do Brasil que dizem que o Bromil serve para tudo, desde a sífilis até aos pesadelos."
"Estás a brincar. Resulta mesmo?"
O alferes veterinário devolveu o frasco de xarope.
"Não há nada como experimentar, não é?"
Entraram na velha igreja seiscentista da Misericórdia e de imediato se calaram, sentindo a imponência do santuário. O interior apresentava-se cheio de luz e ricamente decorado, com uma vasta abóbada de pedra em caixotões trabalhados e pilastras toscanas a sustentar um entablamento classicista. Era talvez a mais bonita das muitas igrejas existentes em Penafiel.
"Tens a certeza de que este é um bom sítio para falarmos?", sussurrou Luís, sentindo as palavras retinir pela igreja.
Amélia indicou as bancadas vazias.
"Não vês que não está aqui ninguém?" Ajoelhou-se, juntou as mãos em oração e murmurou:
"Faz de conta que estamos a rezar."
Luís achou boa ideia e imitou-a, ajoelhando-se e começando a fingir que rezava.
"Ligou-me o teu marido", disse ele, soprando as palavras como se rogasse perdão ao Senhor.
"Disse-me que o comandante quer falar comigo e com ele."
"Sobre quê?"
"Não sei. Mas estou preocupado."
"Porquê? Pode ser um assunto qualquer do quartel."
"Lá poder, pode. Mas é a primeira vez que o comandante me convoca para uma reunião. E logo com o teu marido também presente."
"Achas que apanharam o Chico?"
"Não sei. Talvez."
Amélia quase gemeu.
"Ai meu Deus, Virgem Santíssima! Isto não pode estar a acontecer!"
"Tem calma, isto sou eu apenas a especular."
"Como é que te soou o Mário?"
"Normal. Mas ele também não sabe qual o assunto da reunião."
Amélia benzeu-se, embora dessa vez não tenha sido a fingir.
"Queira Deus que esteja tudo bem. E agora, o que fazemos?"
"A reunião é às três. Vamos esperar para ver o que o comandante tem a dizer."
A amante olhou para ele, subitamente irritada.
"Se não sabes ainda do que se trata, porque me vieste aqui desinquietar?", protestou, erguendo ligeiramente a voz. "Já sabes que eu ando com os nervos à flor da pele..."
"Desculpa", apressou-se ele a dizer, tentando acalmá-la. "É que a convocatória pôs-me nervoso e eu próprio precisava de desabafar com alguém."
Calaram-se um momento.
"Bem, não há-de ser nada", devolveu ela por fim, de novo a sussurrar. "Andamos os dois nervosos com a possibilidade de o Chico ser apanhado. Vais ver que não há-de ser nada."
"És capaz de ter razão." Chegou-se um pouco mais a ela. "Tenho saudades tuas."
"Eu também", devolveu a amante. "Tenho muitas saudades. Muitas, muitas."
"Não podemos continuar a viver assim."
Amélia afastou-se, fazendo um esforço por manter a distância.
"Não temos alternativas, Luís. Não podemos voltar a fazer aquilo que fizemos em Castelo de Paiva. Nunca mais."
"Não consigo estar longe de ti."
"Tens de conseguir. Lembra-te que eu sou casada e tu também és casado, ainda por cima com a minha irmã. A nossa loucura em Castelo de Paiva provocou uma desgraça. Não podemos deixar que uma coisa dessas volte a acontecer. Se o Tino nos descobriu logo à segunda vez, a Joana também vai descobrir e o Mário também acabará por descobrir."
"Fugimos."
"Já te disse que não pode ser. E os meus filhos? Como poderei eu viver sem estar com eles?"
"Levamo-los connosco."
"Estás doido? Queres passar a vida toda com medo de ser preso?"
"Preso? Que eu saiba, não vou quebrar nenhuma lei."
"Mas vou eu. Não sabes que a lei agora diz que o homem é o chefe de família e que a mulher lhe deve obediência? Isto quer dizer que o Mário manda em mim. Se lhe desobedecer, estou a cometer um crime." Deixou escapar um suspiro. "Além do mais, se fugíssemos, que iria eu fazer? Ia esconder-me num sítio qualquer com os miúdos?"