"Podias trabalhar..."
"Isso é que era bom! Não sei se sabes, mas preciso de autorização do meu marido para poder trabalhar. Achas que, se eu fugisse e levasse as crianças comigo, ele me dava autorização para trabalhar?"
Sentindo-se apanhado numa ratoeira e sem ver como sair dela, Luís desistiu de argumentar. A lei fazia dela uma refém do marido.
"Porra para isto."
Respirou fundo e ergueu-se. Doíam-lhe os joelhos e as costas devido à posição em que estivera, mas isso não era nada comparado com a angústia que o agrilhoava. Precisava de se sentir livre e aquela igreja parecia-lhe um túmulo. Sem dizer mais uma palavra, sem sequer voltar a olhar para Amélia, virou as costas e foi-se embora.
II
O enorme Junkers inclinou-se para a esquerda, barulhento, rodou pesadamente no ar, à procura do vento dianteiro, e estabilizou no enfiamento da estreita faixa de alcatrão. Mas estabilizar é forma de dizer, o aparelho perdia altitude aos solavancos, como se descesse uma montanha invisível, aos saltos, aspirado por buracos de ar, tombando sempre mais e mais ainda.
Francisco Latino sentiu gotas de suor deslizarem-lhe pelas têmporas e os músculos retesarem-se a cada abanão; cerrou os olhos e murmurou um ansioso ave-maria, as palavras mais sentidas na parte final da oração, quando entoou o "rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte".
Considerava-se um homem destemido, capaz de afrontar tudo e enfrentar todos, já o provara inúmeras vezes ao longo dos seus curtos e turbulentos dezanove anos de vida, mas aquilo, ah!, aquilo parecia-lhe loucura a mais, meter-se numa caixa fechada e voar sobre as nuvens como um pássaro afigurava-se-lhe
uma aventura demente, coisa de doidos. Onde é que já se vira alguém meter-se assim num caixão com asas?
Uma brutal sacudidela, acompanhada por um guincho estridente, anunciou-lhe que o avião tocara no solo. Apertou a almofada do assento diante de si com as grossas mãos, como se assim se conseguisse salvar, como se da sua enorme força dependesse a segurança da máquina. Mas as coisas pareceram acalmar; o JU-52 assentou por completo na pista e perdeu velocidade, ao ponto de quase parar.
Uma erupção de aplausos estalou dentro do avião.
"Viva la Légion!" , gritou uma voz.
"Vivaaaaa!", devolveu o coro.
Os homens da 12.a companhia abandonaram em fila o Junkers da Lufthansa e Francisco foi dos últimos a sair. Sentiu o ar quente e seco do Sul de Espanha a bater-lhe na face. Corria o dia 27 de Julho de 1936 quando cruzou a porta do aparelho e desceu as escadas, ainda mal refeito das emoções do voo. Mas o calor não o impressionava; no fim de contas acabara de deixar Tetuán, e aí, mesmo às portas do grande deserto do Sara, é que se sabia o que era calor a sério, calor daqueles que seca a boca e deixa um homem prostrado, calor que mata e não amola apenas.
Pisou a pista da base de Tablada e seguiu a fila com a mochila às costas; os homens guiados por oficiais caminhavam para um hangar em busca de sombra e água fresca, mas alguns paravam pelo caminho e urinavam no alcatrão. Francisco passou por eles e só parou quando chegou ao hangar e deitou a mochila ao chão.
"Entonces, Paço?", disse-lhe um militar aloirado, de olhos ver-de-garrafa e um sorriso traquina a bailar-lhe no rosto. "Qué tal?"
"Qué tal o quê, ó merdoso?", rosnou Francisco. "Já te disse que não me chames Paço, ouviste?"
"Ay, carayl Entonces como te llamo, hombre?"
"Chico, já te disse mil vezes."
"Paço es mejor."
"Olha lá, Juanito, Paço é para espanhol. Eu sou português."
"Qué mal tiene Paço? El comandante Franco se llama Paço, no?"
"Quero lá saber!"
"Paço esta bien."
"O paneleiro, presta bem atenção." Ergueu o dedo, como quem faz um derradeiro aviso. "Na minha terra, Francisco dá Chico, percebes? Não dá Paço porra nenhuma, hã? Portanto, acaba lá com essa merda de me chamares Paço."
"Si, Paço."
"Cabrão!"
Francisco esticou o enorme braço e fez um movimento em gancho, tentando apanhar Juanito, mas o espanhol antecipou-se, ágil e rápido, e escapuliu-se com uma gargalhada. Juanito escondeu-se atrás de um grupo de militares e espreitou por entre eles com ar trocista.
"Paço! Paço!"
O português era um homem largo e forte, um verdadeiro Neanderthal, o corpo peludo e musculado, mas com os membros curtos; tinha a cabeça pequena, o cabelo cortado à escovinha, maciças arcadas supraciliares e olhos negros miúdos encovados no rosto. Sabia que em força não havia quem o batesse, mas em velocidade era diferente. Juanito tinha-se escapado e nem foi atrás dele para o apanhar; não o conseguiria se tentasse. Em vez disso, acomodou a mochila contra a parede e sentou-se no chão, as largas costas assentes sobre ela.
Um burburinho nervoso enchia o hangar. Viam-se militares por toda a parte, uns a conversar, outros estendidos no chão
ou encostados às paredes, enquanto lá ao fundo os mecânicos se afadigavam em torno do motor dianteiro do único avião estacionado no local; o aparelho exibia na carlinga umas divisas bizarras, pareciam dois raios paralelos.
"Que avião é aquele?", perguntou Francisco a um homem que descansava à sua direita.
"Es un Savoia 81."
"Um quê?"
"Un Savoia 81. Es italiano. Acabo de llegar de Milano, emprestado por Mussolini." O
legionário riu-se. "Pêro me parece que ya veyo con problemas, no?" Fez um gesto de desdém em direcção ao trimotor rodeado de mecânicos. "Mira. Solo nos mandan la mierda."
"Mas aquele em que viemos era diferente."
"Ah, pêro ese era de los alemanes. El tio Adolfo manda todo que es bueno, no?"
Francisco acomodou-se no seu lugar e fechou os olhos. Sabia que não dispunha de muito tempo para descansar e queria aproveitar todos os minutos que lhe concediam. Contudo, não conseguiu adormecer e, ao fim de uns quinze minutos, sentiu alguém encostar-se do seu lado esquerdo. Abriu os olhos e reconheceu Juanito.
"Hola, Paço."
"Cala-te com isso, paneleiro."
Juanito não respondeu. Pegou no cantil de alumínio, protegido por uma cobertura verde-azeitona, e bebeu um golo. Depois estendeu-o ao português.
"Quieres?"
"Não."
O espanhol enroscou a tampa e guardou o cantil junto à anca direita. Encostou-se à sua mochila e ficou a mirar o Savoia italiano.
"Ay, madre miar, suspirou. "Estive a falar com um tipo da V Bandera que veio cá. Disse-me que Sevilha está controlada e que começaram agora a ocupar o maior número possível de povoações, de preferência ao longo da fronteira com o teu país. Acho que os mandaram ontem tomar um povoado qualquer, chama-se Utrera ou Utreta ou lá o que é. Conquistaram a povoação num instante e deram cabo dos rojos que tentavam fugir pela carretera de Jerez de La Frontera. Foi tudo despachado a tiro de metralhadora."
Francisco encolheu os ombros, indiferente.
"Bom proveito."