Torturava-se a adivinhar o que lhe ia na cabeça. Será que ela gostava dele? Parecia-lhe que sim. Que outra explicação poderia haver para o facto de ela se afastar das amigas da turma para passar o tempo com ele? Mas a natureza exacta dos sentimentos que Amélia nutria por ele escapava-lhe. Seria apenas amizade? Achar-lhe-ia ela graça, mas nada mais do que isso? Ou será que ela pensava nele como ele pensava nela? Esta pergunta visitava-o com frequência e não achava resposta. Por vezes pensava que sim, convencia-se de que Amélia gostava mesmo dele, mas noutras ocasiões tinha dúvidas, tergiversava, achava que o seu desejo de que ela gostasse dele o fazia confundir tudo. No fim de contas, como explicar a sua passividade? Não tinha Amélia acabado de dizer que estava destinada a outro homem? Não passaria ele de mero passatempo para quem se prepara para mais altos voos?
Em boa verdade, como podia Luís ambicionar uma rapariga tão bela? Não seria presunção sua pensar que a moça mais bonita do liceu poderia gostar dele, gostar de verdade, gostar como nos grandes amores dos filmes ou dos romances?
"A minha casa é para ali", disse Amélia, rompendo o silêncio que se instalara entre ambos.
Luís esticou a cabeça, esquadrinhando a fila de fachadas que se estendia pela rua.
"Qual delas?"
A rapariga franziu o sobrolho.
"Para que queres saber?"
"Ora, gostaria de conhecer a casa onde vives."
"Para quê? Para te botares lá à porta e a minha mãe dar contigo? Havia de ser bonito!"
Luís fechou o rosto, ofendido.
"Tomas-me por quem?" Entregou-lhe o barreleiro e despediu-se, agreste e seco, possuído por um súbito assomo de orgulho. "Adeus."
Deu meia volta e afastou-se. No entanto, volvidos três passos logo lhe começou a custar respirar; o coração tinha mergulhado num turbilhão e palpitava de angústia. Já tivera várias paixonetas, namoricos de criança, mas aquela era a sua primeira paixão a sério, coisa forte a valer, e não sabia como lidar com as múltiplas emoções que o sufocavam. Sentia-se zangado e mortificado ao mesmo tempo, perdido para além do horizonte da razão. Afastava-se dela e arrependia-se já da estúpida soberba que tomara conta dele, amaldiçoava-se em
silêncio por deixar os sentimentos controlarem-lhe a mente; o que lhe passara pela cabeça para se armar em virgem ofendida? Talvez no dia seguinte se plantasse de joelhos a implorar-lhe perdão; a verdade é que se afastava e tinha já saudades dela, sabia que não era capaz de passar sem a ver.
"Luís!"
Aquele chamamento soou-lhe como um gongo salvador, ou talvez fosse apenas o adiamento da execução, efémero mas abençoado. Estacou e, quase a medo, olhou para trás e encarou-a. Amélia permanecia plantada na esquina da sua rua com o barreleiro pousado no chão, o vestido branco com flores vermelhas a bailar ao vento, o cabelo ondulado com madeixas aloiradas a cintilar ao sol, os olhos de mel derreten-do-se nele.
"O que é?"
Ela apontou para os pés.
"Amanhã esperas por mim aqui nesta esquina?"
"Amanhã?"
"Sim, levas-me até ao liceu?"
O rosto de Luís abriu-se num sorriso aliviado.
"Amanhã aqui, às sete e meia."
V
Começou a acompanhá-la todas as manhãs no caminho para a escola. Chegava sem falta pelas sete e vinte, era ainda lusco-fusco, e aguardava pacientemente o vulto adorável que lhe entrara de rompante na vida. Cumprimentavam-se com um sorriso feliz e caminhavam alegremente pelas ruas sóbrias e geladas de Bragança àquela hora matinal, ditosos e despreocupados, a conversa a remoinhar ao sabor apetitoso das palavras; contavam episódios da vida, comentavam assuntos da escola, observavam as coisas da cidade, deleitavam-se com sonhos do futuro.
"Um dia", disse-lhe ele num dos primeiros passeios, "hei-de levar-te de cavalo."
"O quê? Tens um cavalo?"
"Não, mas hei-de ter."
Amélia riu-se.
"Como os príncipes?"
"Isso."
"E como vai ser o teu cavalo?"
"Veloz como a luz." Mirou-a, divertido. "Que nome achas que lhe dê?"
"Será rápido, dizes tu?"
"Um campeão."
Ela fitou o infinito, os olhos sonhadores.
"Chamar-se-á Relâmpago.'''
Passou a viver para aquele passeio madrugador, de tal modo que o alvorecer se tornara o apogeu do dia. Vagueava nas aulas a relembrar o passeio dessa manhã e, quando se despediam no átrio do liceu e a mãe a vinha buscar, soltava-se-lhe a saudade, vagabunda no seu coração.
Gastava o final das tardes a languescer no quarto da pensão, planeando a próxima caminhada enquanto se espreguiçava na cama ou brincava com os periquitos ou os peixes do pequeno aquário. Ao jantar mal ouvia dona Hortense a discorrer a propósito de quão
"fisquinho" ele se encontrava e da necessidade de comer até ficar "arressuado", e deitava-se a imaginar a conversa do dia seguinte.
As noites eram interessantes como as fitas de cinema, pois era então que, sonhando acordado, elaborava o guião que lhe convinha. Fantasiava que tudo se precipitaria quando se voltassem a encontrar pela manhã; ele abrir-lhe-ia a alma, Amélia devolver-lhe-ia o olhar apaixonado e ambos cairiam nos braços um do outro. Exactamente como nos filmes, ele Rudolfo Valentino, ela May McAvoy.
Esforçava-se nesses momentos por manter a mente casta e idealizar apenas palavras puras e esgares adoradores, mas o desejo puxava-o amiúde para a carne e, quase sem dar por isso, imaginava-se a meter-lhe os dedos pela bata para lhe apertar um seio fofo ou a mergulhar-lhe a mão pelas saias para lhe acariciar uma nádega macia. Chegado a esse ponto, a
imaginação tendia a excitar-se ainda mais e, largando os seios e as nádegas, as mãos famintas metiam-se por entre as pernas de fêmea para lhe sentir o calor ardente e húmido.
Pela manhã apenas restava um vago sentimento de culpa, o travo indistinto de transgressão que se desvanecia na pressa do madrugar, quando o novo dia fazia dos calores da noite uma leve memória que logo queria esquecer, como se a lembrança dos ardores imaginados com Amélia se esmorecesse na urgência do vestir e do comer e do correr para chegar a tempo ao habitual ponto de encontro.
Com o desfiar pachorrento dos dias, os passeios até ao liceu confirmaram-se como o momento mais importante da jornada; eram tão deliciosos que lhe começaram a parecer enervantemente curtos. Das primeiras vezes optaram pelo caminho mais directo, mas depressa Luís se apercebeu de que teria de prolongar o instante e convenceu-a a fazer desvios em busca de rotas alternativas.
"É para ser diferente", alegou. "Assim a paisagem vai variando."
Um dos novos itinerários levou-os a passar diante da casa de fotografia da cidade, um pequeno estabelecimento com retratos a preto e branco expostos nas vitrinas, clichés que aprisionavam em sépia olhares esfumados no tempo. Amélia aproximou-se devagar da loja, como se possuída por um misto de horror e fascínio, e ficou a observar fixamente as imagens.
"O que é?", perguntou Luís, intrigado. "Queres uma fotografia?"
A rapariga manteve o olhar brilhante preso nos retratos. Um deles mostrava uma família com três crianças, outro registava um casal em trajes de domingo e expressão séria, a pose perdida num momento efémero.
"Antes de o meu pai morrer, a minha mãe trouxe-nos aqui. A mim e à minha irmã."