O camião progredia aos solavancos e Francisco saltitava no assento de madeira, emparedado pelos homens da 12.a companhia. Juanito dormitava encostado ao seu ombro esquerdo, os lábios entreabertos e um fio de saliva a escorrer-lhe da boca. À direita, a cabeça apoiada no cano da sua metralhadora, estava o sargento Gomez, e mesmo em frente, os olhos perdidos na lona do camião, sentava-se Murillo, o italiano folgazão cuja jovialidade era vencida pela monotonia da viagem.
"Che ore sono?", quis saber Murillo.
Francisco consultou o relógio.
"Cinco da tarde. Já aqui estamos fechados há quatro horas."
"Quattro ore? Madona!", exclamou o italiano, rolando os olhos azuis. "Che viaggio!"
"Vá lá, não te armes em maricas. Já deve faltar pouco para chegarmos."
"Mi dispiace, non capisco."
"Capiscas, capiscas. Se eu te capisco, tu também me capiscas, ou não é assim?"
O italiano não respondeu. Recostou-se no assento e fechou os olhos. Francisco percorreu o rosto dos homens que com ele seguiam no camião de transporte de tropas e percebeu que estavam todos demasiado cansados. Não tinham dormido na noite anterior devido aos preparativos para a viagem que o capitão Fuentes repentinamente lhes anunciara. Voaram do Norte de África nessa mesma manhã e, pouco depois de chegarem a Sevilha, foram metidos no camião para ajudarem a "limpar"
um bairro da cidade, até ali nas mãos dos rojos. A operação revelou-se tranquila, uma vez que os legionários de outra unidade tinham já feito o essencial, pelo que acabaram depressa o trabalho e viram-se de novo atirados para o camião. Estavam finalmente a fazer aquilo para que haviam sido treinados, mas, ao cabo de tantas horas de viagem, já ninguém parecia especialmente excitado com a perspectiva de entrar em combate.
Francisco fungou e escarrou lá para fora. O camião erguia uma nuvem de poeira no seu encalço, ocultando os camiões que seguiam atrás. Murillo tinha razão, pensou o português. A viagem estava a tornar-se demasiado longa. Com um pouco de sorte, considerou, ainda lhes dariam umas horas de descanso antes de voltarem a entrar em acção. Mas talvez não o fizessem; afinal eles eram a ralé, os piores dos piores, os mais brutos da criação, e provavelmente ninguém se preocuparia com questões tão insignificantes como o cansaço.
A verdade é que a piores viagens já ele se submetera. De olhos fixos na nuvem de pó que se levantava atrás do camião, Francisco reviu a sua vida desde o momento fatídico que tudo mudara, o instante em que matara Tino com as suas próprias mãos em Castelo de Paiva. Tratou-se de um momento de viragem na sua vida porque foi nessa altura que se tornou um animal acossado.
Saltitando ao ritmo dos solavancos do
camião, passou na mente as imagens da aventura que foi a fuga à GNR. Depois de sair da Quinta de Pousada, meteu-se pelos montes, atravessou o rio e refugiou-se sob a giesta de uma grosseira cabana do vale do Sousa, mas a guarda começou a rondar o local e fora obrigado a mudar-se para Trás-os-Montes. O cerco apertou-se de novo e viu-se forçado a descer para Castelo Branco.
Descobriu que afinal o seu nome também estava referenciado pela polícia de toda aquela região, pelo que, após algumas semanas a saltitar daqui para ali, roubando comida e assaltando viajantes, sentiu-se cansado de tanto fugir e decidiu cruzar a fronteira.
Começou a deambular por Espanha. Voltou aos assaltos e aos roubos, era a única maneira que tinha de comer para viver, e depressa acabou com a Guardiã Civil no encalço. Foi nessa altura que as conversas com outros vagabundos lhe revelaram a existência de uma organização militar onde, dizia-se, se aceitavam recrutas sem perguntas nem documentos, e ainda era oferecido um prémio de quinhentas pesetas por uma comissão de cinco anos e quase quatro pesetas mensais de soldo, mais uma gratificação anual de mil e quinhentas pesetas.
Um paraíso.
Francisco dirigiu-se à localidade mais próxima, que no caso foi Salamanca. Perguntou por um posto de recrutamento e, quando o encontrou, nem hesitou. Entrou lá dentro e quis saber se tudo o que lhe haviam dito era verdadeiro, se ninguém fazia perguntas e até lhe pagavam um soldo.
Responderam-lhe que sim. Satisfeito por ouvir a confirmação, logo anunciou que se queria inscrever.
"Como te llamas?", perguntou o graduado que lhe preencheu os documentos.
Francisco hesitou. Depois do "Francisco" ainda esteve para dizer o nome da família que o adoptara e com o qual se
baptizara, "Rodrigues". A boca ainda tinha formado o "Ro...", mas conteve-se a tempo; apesar de a inteligência não ser um dos seus principais atributos, percebeu nesse instante que começaria ali uma vida nova e precisava de um novo nome. Mais do que isso, precisava de um nome limpo. Limpo.
Lembrou-se do Tino, do Constantino Latino que assassinara semanas antes com as suas próprias mãos, e achou que seria boa ideia ressuscitar o morto. Era uma forma de desfazer o que havia feito e talvez assim conseguisse um perdão dos céus.
"Latino."
"Francisco Latino?"
"Isso."
Rabiscou desajeitadamente uma cruz nos papéis que lhe estenderam e foi cumprimentado pelos homens do posto de recrutamento, que lhe ofereceram um copo de Rioja para assinalar o momento.
Se soubesse ler teria logo decorado o nome da organização na qual acabara de se inscrever. O topo do papel de inscrição ostentava um logótipo e três palavras castelhanas. Tercio de Extranjeros.
A Legião Estrangeira.
III
Esperaram algum tempo sentados numa velha e dura cadeira de madeira, o sol forte da tarde a jorrar pela janela, transformando a salinha que servia de antecâmara ao gabinete do comandante num verdadeiro forno. O Verão ia adiantado e o calor apertava naquele dia de Agosto de 1936, fazendo da sala uma estufa abafada, como se os seus ocupantes estivessem a banhos.
O coronel Silvério tinha ido almoçar a casa e estava atrasado; é certo que a falta de pontualidade era desaprovada pela etiqueta militar, mas o facto é que a violação dessa etiqueta constituía uma prerrogativa que alguns superiores hierárquicos gostavam de chamar a si.
"Acha isto normal?", quis saber Luís, rodando a cabeça num irreprimível tique nervoso.
A convocatória enervara-o e via naquele atraso mais um mau augúrio. Seria possível que o coronel se encontrasse naquele momento na polícia? Teria Francisco sido mesmo capturado? Estaria a demora relacionada com trâmites policiais ou judiciais? A espera deixava-o inquieto para além do suportável. Com toda aquela ansiedade, não conseguia ficar quieto na cadeira; mexia os braços e as pernas sem cessar, dobrando-os e esticando-os, os pés quase a dançarem no soalho, as mãos ocupadas com tudo e com nada.
"Tenha calma, homem", pediu o capitão Branco, impressionado com tamanho desassossego.
"Ele já aparece."
"Mas não acha estranho todo este atraso? Já estamos aqui há quase meia hora, que diabo! Deve estar a passar-se qualquer coisa..."
"Que coisa?"
"Não sei. Qualquer coisa, sei lá."
"Não se apoquente, o nosso comandante é mesmo assim."
"Meia hora de espera?" Luís pôs-se de pé, já incapaz de conter o nervosismo. "Não, não é normal."
"Oiça, Luís, por que razão está assim tão nervoso?", perguntou o capitão. "Passa-se alguma coisa?"
"Não, nada. É só que estranhei esta convocatória. Não acho normal o nosso comandante querer falar comigo. Ainda por cima chega atrasado..."
"Você não roubou nada, pois não?"
"Que eu saiba, não."
"Então está preocupado com quê?" Baixou a voz, para não ser escutado. "Você não sabe que o nosso comandante não é uma pessoa pontual? Ele até costuma dizer que os subordinados foram feitos para esperar..."