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"O meu capitão tem a certeza?"

"Claro. Eu próprio já o ouvi dizer isso."

As palavras do capitão Branco acalmaram momentaneamente Luís, que voltou a sentar-se.

Tinha de controlar os nervos, pensou. Estivesse ou não ansioso, isso não impedia que o que tivesse de acontecer acontecesse. Além do mais, se Francisco tivesse sido capturado, tal já se saberia. Ou não?

O alferes Boavida entrou na antecâmara e interrompeu o vicioso e obsessivo ciclo de maus augúrios.

"Vem aí o nosso coronel", anunciou.

A chegada do comandante do regimento foi precedida pelo som de passos apressados a aproximarem-se, traque, traque, trunque, trunque, até que a porta se abriu com fragor e o coronel Silvério entrou de rompante na antecâmara, como se uma súbita tempestade ali tivesse desabado.

Com um salto, Luís e o capitão Branco ergueram-se da cadeira e fizeram continência ao mesmo tempo, os movimentos coordenados, como se tivessem ensaiado a saudação.

"Meu comandante."

O coronel acenou com a cabeça, fazendo sinal aos subordinados de que o seguissem.

"Ah, meus senhores", disse, abrindo a porta do seu gabinete. "Venham daí, temos de conversar."

O tom tranquilizou de imediato o alferes veterinário. Se fosse caso de polícia, o comandante teria falado de outro modo e provavelmente viria acompanhado da polícia militar ou civil. Foi como se um peso lhe tivesse saído do peito, embora se mantivesse em alerta. Fosse qual fosse o assunto, decidiu, convinha ser prudente na conversa. Meteu na cabeça que o importante era ouvir e não falar, não se fosse dar o caso de dizer algo que atraísse desnecessariamente as atenções sobre si.

O comandante do regimento era um indivíduo baixo, de cabelos brancos a escassearem no topo da testa e uma barriguinha que traía a natureza indolente de homem pachorrento e amigo do bom garfo. No gabinete ostentava as bandeiras portuguesa e do regimento instaladas por trás da secretária, mesmo ao lado de uma enorme fotografia a preto e branco com o rosto seráfico de Salazar. Contudo, e ao contrário do que era habitual quando despachava com subordinados, o coronel optou por se sentar no sofá, convidando os dois subalternos a fazerem o mesmo.

"Fumam?", perguntou Silvério, exibindo um maço de cigarros logo que se acomodou.

"Agora não, meu comandante", disse o capitão, secundado pelo alferes. "Obrigado."

Silvério acendeu um cigarro e soltou uma nuvem cinzenta de fumo.

"Gosto sempre do meu cigarrinho depois do almoço", comentou com ar descontraído. "Os senhores não?"

"Eu prefiro o meu café, meu comandante."

Luís permaneceu calado, deixando o capitão Branco fazer as despesas da conversa e limitando-se a emitir um grunhido enquanto fazia sim e não com a cabeça.

"Querem que eu peça um café?"

"Não, não. Já tomámos ao almoço, meu comandante. Obrigado."

O coronel aspirou o cigarro e inclinou-se para a frente, assinalando que o curto interlúdio para a conversa de circunstância tinha terminado. Chegara a altura de ir direito ao assunto.

"Meus senhores, chamei-vos aqui por causa de uma missão delicada que vos vou confiar."

Mirou o cigarro que lhe ardia entre os dedos amarelados de nicotina como se procurasse palavras para introduzir o tema. Ergueu por fim os olhos e fixou os subordinados. "Como sabem, houve no mês passado um levantamento militar em Espanha e aquilo vai

para lá uma enorme confusão, com os tipos todos aos tiros uns aos outros."

Fez uma pausa, como querendo confirmar que as suas palavras não traziam novidade nenhuma aos seus interlocutores, esforço decerto escusado, uma vez que por essa altura não devia haver adulto em Portugal que não soubesse que a guerra civil eclodira em Espanha.

Mesmo assim, e confrontado com aquele silêncio interrogativo do seu superior hierárquico, Mário Branco sentiu-se na obrigação de corresponder.

"Temos ouvido as notícias, meu comandante."

Luís continuou calado. Não era um oficial de carreira, mas um médico veterinário, pelo que não percebia bem o seu papel naquela conversa.

"E qual a vossa opinião?", quis saber o comandante.

Os dois homens remexeram-se no sofá, pouco à vontade. Não ignoravam a simpatia com que o regime encarava a revolta em Espanha e sabiam que um alinhamento errado poderia trazer-lhes problemas. As cautelas eram maiores da parte de Luís, devido ao seu menor estatuto no quartel, mas também por causa das opiniões antagónicas que nutria em relação à ditadura e sobretudo pelo facto de estar determinado a manter-se o mais invisível possível. Olhou por isso para Mário Branco, como que a pedir-lhe que respondesse por ele.

"Meu comandante, acho que se está a passar agora em Espanha o que aconteceu em Portugal em 1926", começou o capitão por dizer. "Os Espanhóis cansaram-se da bagunça republicana e querem pôr ordem na casa, só isso. Não nos podemos esquecer do que foram aqueles tempos de anarquia no nosso país, com a carestia de vida, a fome que havia por toda a parte, a violência, a indisciplina a todos os níveis da

sociedade, incluindo nos quartéis. Enfim, o caos. Não se lembra o meu comandante que, em apenas cinco anos, tivemos uma série de governos?"

"Dezoito."

"Pois, está a ver. E ao longo dos dezasseis anos de república houve também uns dezoito golpes de estado e revoluções."

"Foram mais", corrigiu o comandante. "Foram dezoito governos e vinte e dois golpes e revoluções. Contei-os todos, um a um. Vinte e dois golpes e revoluções, veja só!" Indicou com a cabeça a enorme fotografia de Salazar pregada à parede, por detrás da secretária. "Se não fosse aquele senhor ali, não sei não. Portugal não se punha direito."

"Pode ter a certeza disso, meu comandante. A diferença entre nós e os Espanhóis é que a nossa transição da bagunça para a ordem foi relativamente pacífica e a deles não está a ser."

O coronel Silvério aspirou de novo o cigarro que lhe bailava entre os dedos e inclinou-se para a frente, sinalizando que queria ser ele a dirigir a conversa dali para a frente.

"Há uma outra diferença, capitão", observou por entre o fumo, respeitando mais uma pausa, dessa feita com um certo ar de melodrama. "A nossa revolução de 1926 não teve impacto nenhum em Espanha. Nós ficámos com a ditadura e progredimos. Mas eles não foram influenciados pelo nosso rumo e caminharam em sentido contrário, pondo fim à monarquia e instituindo a democracia parlamentar, que abriu a porta a toda esta confusão. Primeiro ganharam as esquerdas, depois as direitas, e agora as esquerdas outra vez. O problema é que o que se está a passar em Espanha poderá ter um profundo impacto aqui em Portugal."

"O que quer dizer com isso, meu comandante? Não estou a entender..."

"Sabe, capitão, desde que foi instituída a república em Espanha que a gentinha do reviralho, que deixou de ter espaço aqui para as suas intrigas mesquinhas, resolveu fugir para lá. Encontraram entre os Espanhóis o espaço ideal para alimentar as suas conspirações da treta contra o regime. Isso seria para rir, não se desse o caso de esses idiotas encartados terem começado a ser usados pelos comunistas espanhóis para fomentar o grande plano de Moscovo de uma Península Ibérica vermelha. Os bolchevistas querem expandir o comunismo internacional e estão a encorajar os Espanhóis a abocanhar Portugal. Ora os palermas do reviralho que fugiram para Espanha aceitaram transformar-se em instrumentos dessa política expansionista dos vermelhos, tornando-se assim verdadeiros traidores à pátria."

Até aí sempre calado, Luís não conseguiu resistir nesse ponto e deu consigo a meter-se na conversa.