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"Hmm..."

"Aliás, se repararem, esta treta do Acordo de Não Intervenção não saiu da cabeça dos Franceses, mas dos Ingleses."

"Não foi isso que veio nos jornais."

O comandante tirou uma pequena maçã amarela do cesto de fruta que se encontrava pousado na mesinha do candeeiro.

"Os jornais apenas mostram a bonita superfície desta maçã, não o interior podre", disse, exibindo a peça de fruta. "Se bem se lembram, quando o exército espanhol se revoltou, os Franceses começaram a enviar equipamento militar para os vermelhos, através dos Pirenéus. Ora os Ingleses, que queriam cortar a ajuda aos vermelhos para facilitar o êxito da revolta, avisaram os Franceses de que teriam de fechar a fronteira. A Inglaterra disse que, se a França continuasse a ajudar os comunistas e, por causa disso, viesse a entrar em guerra com a Alemanha, se sentiria desobrigada de ajudar os Franceses. O Blum, em Paris, quando ouviu isto ficou borrado de medo, pois claro, e fechou mesmo a fronteira. Mas, como os bolchevistas franceses e os sindicatos se puseram a protestar, ele inventou esta xaropada do Acordo de Não-Intervenção para se safar do engulho."

"Estou a ver", assentiu o capitão.

O coronel Silvério aspirou o cigarro pela última vez e esmagou-o no cinzeiro que se encontrava na mesa ao lado do sofá. Deixou sair o fumo pela boca e pelas narinas e pigarreou, como se estivesse a indicar que por fim iria direito ao assunto.

"Ora bem, meus caros", começou por dizer. "Eu queria ouvir a vossa opinião e explicar-vos todas estas coisas porque vou incumbir-vos de uma missão muito delicada." Afinou a voz, como se estivesse rouco, e ergueu dois dedos. "Na verdade, são duas missões." Apontou para o capitão. "A primeira é consigo." Pegou nuns papéis que tinha pousado sobre a mesa. "Foram emitidas ordens de Lisboa para serem criadas duas organizações especiais. Uma é a Legião Portuguesa, dependente dos ministérios do Interior e da Guerra e que se destina a criar uma milícia paramilitar, organizada à maneira da Legião Estrangeira espanhola, com batalhões, terços, lanças, secções e quinas, para fazer frente a eventuais focos de contestação interna dos comunistas e reviralhistas que queiram aproveitar os maus ventos que vêm de Espanha."

"Se me permite, meu comandante, isso parece-me uma coisa inspirada no Mussolini. Não sei se me agrada..."

O coronel Silvério suspirou.

"A bem dizer, nem a mim me agrada. Acho esta força paramilitar uma ideia concebida pelos fascistas, e aproveitada pelo regime, para nos manter nos quartéis e para mostrar que não precisam de nós na manutenção da ordem nas ruas." Encolheu os ombros. "Mas, enfim, ordens são ordens, não é verdade? De qualquer modo, esta força nada tem a ver consigo, fique descansado." Fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas. "A segunda organização, no entanto, é diferente. Já ouviu falar na Mocidade Portuguesa?"

"Claro que sim. E uma nova organização de escuteiros, não é verdade?"

"De certo modo, mas com uma componente política. A Mocidade Portuguesa vai abranger toda a juventude, incluindo a que não anda na escola. O regime quer estimular o exercício físico, as actividades de grupo, o amor à pátria, o

sentido de ordem, disciplina, respeito... essas coisas. A ideia é mudar a mentalidade do povo, está a ver? Queremos acabar com a desorganização, o caos, a falta de solidariedade, o desregramento e esta coisa muito portuguesa de falar muito e fazer pouco." Fez um gesto enfático com a mão, quase galvanizado. "Vamos pôr fim ao português da bandalheira e criar o português novo, moderno, solidário, respeitador, patriota."

"Assim dito, meu comandante, parece uma ideia interessante."

O coronel Silvério sorriu, satisfeito com a sua tirada, e apontou o dedo ao subordinado.

"Ainda bem que acha isso, porque será você quem vai organizar e chefiar o núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa."

"Eu?", admirou-se o capitão Branco. "Não haverá outra pessoa que possa fazer isso?"

"Você é um organizador nato e esta missão assenta-lhe que nem uma luva." Depois olhou para Luís. "A segunda missão envolve-vos aos dois. É uma coisa estritamente confidencial e nem sequer às vossas famílias podem falar disso, entendido?"

Os dois subordinados assentiram. O coronel levantou-se e dirigiu-se a um mapa de Portugal pregado na parede.

"Ora bem, em algumas áreas raianas estamos a montar operações de apoio ao exército espanhol", disse, indicando a linha de fronteira. "Coisa secreta, bem entendido. Algumas destas operações envolvem a recepção e o alojamento de fugitivos espanhóis, muitos dos quais precisam de assistência médica. Daí que o exército esteja a incluir médicos nas unidades encarregadas de ajudar os espanhóis." Indicou Luís. "Pois é aí que você entra.

Recebi esta manhã ordens para contribuir com uma companhia que integre um médico.

Mas, como sabe, o problema é que perdemos o doutor Maurício e o Porto ainda não nos enviou um substituto. Logo, terá de ser você a fazer o lugar."

"Não há problema", devolveu Luís. "Para onde vamos nós, meu comandante?"

O coronel Silvério indicou no mapa o ponto da fronteira em Valença.

"Aqui para o Minho, junto à fronteira galega." Olhou para o outro oficial. "O nosso capitão também irá para chefiar a nossa companhia."

Mário Branco fixou a atenção no mapa.

"Será uma operação da nossa exclusiva responsabilidade, meu comandante?"

"Claro que não. Vocês irão articular-se com o regimento de Viana do Castelo, que também enviou uma unidade para Valença." O coronel Silvério voltou a sentar-se e pegou no cigarro que tinha deixado pousado no cinzeiro. "Preparem-se para uma missão complicada."

"Porque diz isso, meu comandante?"

Com intencional lentidão, o responsável pelo regimento cruzou as pernas, inspirou fundo o cigarro e exalou uma densa nuvem de fumo cinza que rodou pelo ar em rolos, como anéis etéreos em metamorfose.

"É possível que alguns refugiados sejam comunistas."

IV

O calor era insuportável e por várias vezes Francisco teve de passar a manga pela testa para enxugar o suor que lhe escorria do topo do couro cabeludo. Ajeitou a Hotchkiss, realinhou a mira da velha metralhadora e largou mais uma rajada sobre a porta da igreja. Da entrada veio a resposta, três tiros de pistola, mas o português não se intimidou e descarregou nova chuva de projécteis sobre o local.

"Mete-me um novo cinto", grunhiu para o lado quando sentiu o gatilho a disparar em seco.

"Outra vez?"

"Mete-me um novo cinto, caraças!"

Juanito pegou em mais um cinto metálico, carregado com duzentas e quarenta e nove balas, e encaixou-o na metralhadora francesa. Tinha nas mãos uma arma de oito milímetros caída em desuso, uma espécie de relíquia da Primeira Guerra Mundial que sobreviveu na Legião unicamente graças à sua fiabilidade. Pelos padrões modernos, a Hotchkiss podia ser uma metralhadora ultrapassada, mas o facto é que chegava perfeitamente para dar cabo das bordas rojas que se opunham ao pronunciamiento.

"JoderV', praguejou Juanito entre dentes. "Temos de acabar com esta mierda."

"O que queres? Os gajos entrincheiraram-se bem. Vais ver que vamos precisar de deitar a torre sineira abaixo!"

O espanhol benzeu-se.

"Deitar a torre sineira abaixo? Ay, carayl Não pode ser! Não se bombardeia uma igreja, hombre!"