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odor adocicado de carne queimada revelava-se aqui mais forte do que em qualquer outra parte da povoação, à excepção do cemitério.

"Já viste isto?", perguntou Juanito, apontando para as manchas.

Francisco grunhiu algo de imperceptível.

"Impressionante, eh?"

O português fungou e escarrou no chão, a indiferença estampada no rosto.

"Cagativo."

Deambularam mais um pouco pelo pátio, até que ouviram o ar ser rasgado por uma rajada e uma detonação, a que se seguiram novas rajadas de metralhadora.

"O que é isto?"

Saíram da cadeia apressadamente e imobilizaram-se diante do portão, tentando localizar a origem do tiroteio.

"É na igreja!"

Os dois legionários desataram a correr em direcção à zona da igreja, de onde vinham os tiros.

Viam-se alguns homens a andar apressadamente de um lado para o outro e deram com um legionário que vinha a correr com a Mauser a tiracolo; reconheceram Murillo, o italiano da bandera.

"Qué pasa?", perguntou Juanito.

"Foi o comandante Asensio", explicou Murillo, ofegante. "Mandou incendiar a cbiesa."

"Qual chiesa}"

"A igreja, imbecille!"

Quando chegaram diante da igreja deparou-se-lhes o caos. As metralhadoras da 12.a companhia davam cobertura à operação, disparando sem cessar sobre portas e janelas, de modo a impedir que os milicianos pudessem ripostar. Legionários da 16.a corriam diante da igreja, numa azáfama coordenada; dirigiam as chamas que lambiam a palha húmida e o enxofre, tentando assim direccionar o fogo e o fumo para o interior e

vencer os sitiados pelos efeitos tóxicos e pela possível explosão dos depósitos de combustível das viaturas estacionadas dentro do santuário.

Os legionários recém-chegados assumiram as suas posições e depressa Francisco se viu agarrado à sua metralhadora a descarregar balas sobre todos os orifícios na igreja. Não se via o inimigo, que se recolhera ao interior, mas isso não impediu os homens do Tercio de metralhar as portas e janelas, na vaga esperança de que o fogo sobre esses pontos viesse a atingir alguém.

A operação prolongou-se por toda a tarde, mas nenhum miliciano se rendeu. Pelo contrário, à primeira oportunidade os sitiados responderam com tiros e lançamento de explosivos, obrigando os legionários a recuar e a procurar posições mais bem defendidas.

"Corôo/", praguejou Juanito, a cara já enegrecida pela pólvora. "Devem ter-se abrigado numa qualquer câmara da igreja."

Ao lado, Francisco encaixava já mais balas na Hotcbkiss.

"Isto não vai durar para sempre."

V

Quando soaram os primeiros estampidos do dia, secos e longínquos, a única reacção visível foi a dos pássaros. As andorinhas e os estorninhos ergueram-se em nuvens irrequietas; eram bandos que emergiam da copa das árvores e dos fios eléctricos e telefónicos e esvoaçavam em vagas desorientadas, ora nesta direcção, ora na contrária, como folhas perdidas ao sabor do vento.

Atraídos pelo barulho das detonações, o capitão Mário Branco, o alferes veterinário Luís Afonso e um pequeno grupo de oficiais do regimento de Viana do Castelo convergiram para as ameias de um dos fortes de Valença do Minho e espreitaram para o casario do outro lado do espelho azul e prateado do rio Minho. Na margem norte estendia-se a terra verde da Galiza, tão verde como o Norte de Portugal. Os pontos brancos com telhados de um vermelho cor de tijolo eram as casas de Tui, o derradeiro bastião da república naquela região de Espanha.

"Estão outra vez aos tiros", observou o capitão Branco.

"É sempre a mesma coisa", retorquiu Luís com um encolher de ombros. "Ouvem-se uns tiritos, mas acaba por não acontecer nada."

"Olhe que desta vez é diferente", argumentou o capitão. Apontou para a ponte. "Está a ver os comunistas na ponte? Parecem mais nervosos do que de costume..."

De facto, uma pequena multidão de homens armados formigava junto à entrada norte da ponte internacional, procurando refúgio por detrás de muros de tijolo que tinham sido erguidos nos últimos dias. Concentrava-se ali mais gente do que o habitual; um furriel português contabilizou, da margem sul do rio, cerca de quinhentos homens do lado galego da ponte, embora talvez esse número fosse exagerado. A multidão vagueava por trás dos muros, num frenesim agitado; viam-se homens a correr de um lado para o outro. A dado momento soaram mais alguns tiros, mas a calma depressa voltou.

Convencidos de que a animação havia acabado, os oficiais portugueses desceram da muralha do forte e percorreram as ruas empedradas de Valença do Minho. O passeio terminou diante de um pequeno restaurante do bairro velho, onde foram almoçar; o prato forte à mesa era, naturalmente, o que se passava do outro lado da fronteira e em particular o momento em que tudo se precipitaria.

"Acha que a coisa está para breve?", perguntou Luís, que das coisas militares nada percebia.

O capitão Branco pegou na garrafa e despejou mais vinho no copo.

"Isto ainda vai levar tempo", vaticinou, engolindo um trago. "Ah, maravilha! Bela pomada!"

Olhou para Luís e exibiu-lhe a garrafa. "Você não quer mais?"

"Fico-me com o que já tenho no copo, "obrigado."

"Faz mal!", exclamou. "Um copo de vinho dá de comer a um milhão de portugueses!"

"Dizem eles."

"E é verdade." O capitão ergueu o copo. "Beber vinho engrandece a economia nacional. Você não viu as minhas duas quintas? O que seria delas se ninguém gostasse da pingoleta?"

"Produziam batatas."

"Quais batatas! O vinho é que é bom! Além do mais, dizem que é um alimento de primeira ordem e que está cheio de vitaminas."

Luís meteu o garfo à boca e espreitou pela janela do restaurante.

"De vitaminas vamos nós precisar para aguentar esta chatice. Será que a guerra não acaba?"

"O homem, tenha calma!", sorriu o capitão Branco. "Ela ainda mal começou."

Uma vez concluída a refeição, voltaram para o forte e foram espreitar de novo a ponte internacional. A multidão armada permanecia entrincheirada na parte norte do tabuleiro, enquanto as ruas de Tui se apresentavam desertas, despidas de vida, entregues ao vento estival que nesse dia soprava de sul e transformava a povoação numa lúgubre e triste cidade fantasma.

Uma rajada de metralhadora rasgou o silêncio e lançou a confusão entre os homens armados que se concentravam junto à ponte. Uma nuvem de fumo ergueu-se perto de um muro de tijolo, seguida de um roncar cavado; era o som da explosão que chegava, ao retardador, ao lado português.

"Eh lá!", exclamou o capitão Branco. "Isto agora está a aquecer!"

"Recomeçaram", constatou Luís. "Pelos vistos vai ser mais rápido do que o meu capitão previa..."

"Tenha calma", disse o capitão. "Ainda é cedo para tirar conclusões. Mas é verdade que parece que estavam à espera que acabássemos de almoçar para se porem a dar bordoada a sério..."

O sargento Guedes riu-se.

"Se calhar também pararam a guerra para almoçar. Agora vem a sobremesa..."

O capitão Branco mirou o subalterno com ar agastado.

"Nosso sargento, dispensamos os seus comentários."

O diálogo depressa foi interrompido pelo agravar da situação no lado galego. Viram-se, e ouviram-se, novas explosões; uma granada sobrevoou o rio Minho e deflagrou no meio de Valença do Minho, erguendo um penacho de fumo negro por entre o casario da povoação portuguesa. Para o grupo de oficiais instalado junto às ameias do forte, esta detonação marcou o momento em que os combates deixaram de ser um inofensivo espectáculo que decorria do outro lado do rio e se tornaram uma preocupação séria.