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Alguns militares abandonaram apressadamente o forte e precipitaram-se para junto da ponte, mas Luís ficou para trás a observar os acontecimentos daquele ponto privilegiado. O capitão Branco enviou uma ordenança para o local da explosão e o homem voltou pouco depois com a notícia de que a granada tinha feito dois feridos ligeiros, já enviados para o posto. Nada de muito grave.

As metralhadoras voltaram entretanto a costurar na margem espanhola, desta vez com crescente intensidade. A multidão de homens armados encolhia-se junto ao tabuleiro norte da ponte, por detrás dos muros de tijolo, e respondia ao fogo que convergia sobre ela; mas os seus tiros eram esporádicos, quase anárquicos, contrastando com o tiroteio nutrido que batia as suas posições. Viam-se alguns corpos caídos, como sacos abandonados no chão; eram já restos desamparados, pedaços de carne estendidos ao sol, inertes, sem vida.

Instalados na sua margem como se estivessem no balcão de um animatógrafo, os portugueses tudo observavam com pasmo. Viram um carro blindado emergir de uma ruela do lado galego, acompanhado por vultos esverdeados a pé, homens que curvados; pareciam corcundas minúsculos.

Eram as tropas nacionalistas que se acercavam da ponte, preparando-se para o golpe final.

O aparecimento desta força teve um profundo impacto junto da multidão que defendia a ponte.

Ouviu-se um clamor, o pânico libertado por dezenas de gargantas, e primeiro cinco, depois dez, depois vinte, depois quarenta, cada vez mais homens abandonaram os muros de tijolo e desataram a correr, em desespero; tornaram-se uma manada em fuga, atropelando-se pelo tabuleiro num alvoroço descontrolado. Convergiram para sul, em direcção a Valença do Minho, rumo a Portugal, em busca da salvação, como alguém que se está a afogar e no derradeiro momento emerge à superfície em busca desesperada de ar, numa arrebatada e violenta pulsão de vida.

Portugal era o ar.

A vida.

"Desarmem-nos!", ordenou o capitão Branco aos seus homens, apontando para a multidão que atravessava desordenadamente o tabuleiro da ponte.

Os soldados portugueses colocaram-se em posição de tiro, aguardando a chegada dos fugitivos.

Os primeiros milicianos galegos cruzaram a fronteira portuguesa e deram com uma barreira de soldados portugueses.

"Non díspar enV\ gritou um dos fugitivos no que parecia um português espanholado. "Somos irmáns! Somos galegos!'

"Alto lá!", ordenou o capitão Branco aos recém-chegados. "Larguem as armas!"

Os milicianos deixaram cair as espoletas, as pistolas, as facas, as foices e os ancinhos. Tornava-se ali evidente que o seu armamento era ridiculamente deficiente; não tinham quaisquer hipóteses diante de um exército organizado como aquele que terminava agora a ocupação de toda a cidade de Tui.

"Somos galegos", insistiu o mesmo homem, os olhos sombreados de olheiras e a barba por fazer havia vários dias. "Somos irmáns, non somos casteláns!"

Os fugitivos foram todos arrebanhados e o capitão deu ordem para que os levassem para o forte.

Tinham já sido improvisadas instalações para acolher refugiados; a ideia inicial era proteger civis e nacionalistas que tivessem necessidade de abrigo, mas afinal, e conforme previra em Penafiel o coronel Silvério, as instalações seriam usadas para albergar hóspedes diferentes, os milicianos leais à república.

Os tiros pararam no outro lado da margem. O exército revoltoso ocupava enfim toda a cidade.

Alguns homens puseram-se a arrastar os corpos dos milicianos mortos para junto de um candeeiro e, quase de seguida, apareceu um camião militar no local, para cuja carga os cadáveres foram atirados como sacos. Terminada a limpeza, o camião arrancou e desapareceu nas ruelas de Tui.

Os civis iam, entretanto, aparecendo, alguns com a bandeira de Espanha. Ao fim de algum tempo, quando os populares já eram tantos que perfaziam uma multidão, surgiram insígnias e braceletes da Falange. Os simpatizantes fascistas espanhóis vitoriavam o exército por entre crescentes aclamações em coro.

"Arriba Espana!", gritava a turba num coro que se escutava, forte, da margem sul do rio.

"Arriba!"

À noite, quando iam a caminho dos quartos que tinham ocupado para boleto em Almendralejo, Francisco e Juanito passaram diante da esquadra da Guardiã Civil. Um grupo de mulheres, todas vestidas de negro, aguardava à porta, algumas chorosas, a maior parte em silêncio.

"Quem são estas?", perguntou o português ao companheiro.

"São as mulheres dos rojos."

"Dos comunas? São mulheres dos comunas?"

"Sim. Eles estão presos lá dentro. Vão ser fuzilados."

"E elas?"

"Elas? Cofio, estão ali a ver se alguém tem pena delas e os liberta."

Francisco parou e consultou o relógio. Faltavam duas horas para ambos começarem o turno de cerco à igreja. Era tempo suficiente para o que lhe apetecia fazer.

"Juanito, vai andando, vai andando", disse, voltando as costas ao companheiro. "Eu já vou ter contigo."

Aproximou-se do grupo de mulheres e estudou-as com atenção. A maior parte tinha um ar gasto, três estavam grávidas, mas havia duas que lhe pareceram mais bonitas. Agarrou no braço de uma delas, uma morena alta e bem proporcionada, e puxou-a para si.

"Anda cá, espanholita."

"Larga-me, bruto!", protestou ela.

Um coro de revolta ergueu-se do grupo, mas Francisco mostrou-se indiferente. Saiu dali arrastando a morena aos gritos atrás dele. Duas mulheres mais idosas seguiram-no, berrando para que libertasse a morena, mas o português rodopiou e desferiu um soco brutal na mais próxima, que tombou inerte no chão. As restantes perceberam a mensagem e, apesar dos gritos de protesto e dos insultos, não se atreveram a segui-lo mais.

Francisco calcorreou as ruas sombrias de Almendralejo, sempre a arrastar a morena, que se debatia em desespero. Isso era--lhe, porém, indiferente; tinha de a possuir e possuí-la-ia. A última vez que tivera uma mulher havia sido duas semanas antes, no prostíbulo do quartel de Dar Riffien.

Descobrira o sexo no ano anterior, nos bordéis frequentados pelos legionários, mas até ali apenas pudera usufruir de marroquinas, berberes e uma negra do Sudão, todas elas experimentadas numa cantina do acampamento da Legião ou no barrio de pecadoras da povoação. Aquela espanhola iria ser a sua primeira europeia.

"Cala-te, espanholita", rugiu para trás, já cansado dos gritos. "Já te vou dar o que mereces."

A morena hesitou, momentaneamente assustada com o tom raivoso das palavras, mas logo recomeçou a lutar, tentando hbertar-se da mão forte do português.

"Cabrón! Hijo de una puta!", praguejou. "Larga-me!" Rodou a cabeça para os lados, em procura de auxílio.

voltou a gritar a plenos pulmões. "Socorro! Quem me ajuda? Socorro!"

Francisco não se sentia minimamente preocupado com a possibilidade de alguém a acudir. Ela era mulher de um comunista e ninguém, mas mesmo ninguém, lhe roubaria o prazer de a desfrutar.

Os berros, no entanto, acabaram por enervá-lo. Irritado, puxou-a com um esticão, de modo a posicionar-lhe a cabeça ao alcance da mão, e desferiu-lhe uma sonora estalada na face. A mulher calou-se, estonteada, e logo se afogou numa avalanche de soluços; parou de lutar e dei-xou-se arrastar pela rua escura, resignada ao seu destino.