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Quando lhe apareceu a primeira coluna de camiões na ponte internacional, seis dias depois da tomada de Tui, Luís estava determinado a ser rigoroso. Bem vistas as coisas, tratava-se da primeira inspecção sob a sua responsabilidade, pelo que optou por não se contentar em despachar a burocracia.

O alferes veterinário pediu a identificação dos motoristas e consultou os salvo-condutos e toda a documentação da coluna; os papéis revelavam que os camiões transportavam leite e alimentos destinados às populações espanholas.

"Não é melhor verificar isso?", perguntou Luís, olhando com desconfiança para os documentos.

"Para quê?", perguntou o capitão Branco, pegando nos papéis. Inspeccionou as assinaturas e os carimbos. "Está tudo regular."

Luís apontou para a referência à carga.

"Eles levam leite e alimentos. Será que está tudo em condições? O leite é coisa para se estragar depressa, sobretudo com este calor."

"Você acha?"

"Qual o problema de verificar? Afinal sou médico, não sou? Não custa nada dar uma vista de olhos."

Convencido, Mário Branco saltou para a carga do segundo camião com Luís e o sargento Guedes no encalço e foi verificar os contentores que o veículo transportava. Eram caixas de madeira, com a palavra Beirolas impressa sobre as tábuas. O capitão estranhou a palavra e mandou o sargento Guedes abrir um dos contentores.

"Meu capitão", protestou o responsável pela coluna. "Os contentores só podem ser abertos no destino."

"Eu é que sei onde podem ser abertos", retorquiu o oficial de uma forma que não admitia discussões.

"Mas essas são as'minhas ordens", insistiu o responsável.

"E as minhas ordens são garantir que o abastecimento às populações chega em condições à Galiza." Apontou de novo para o condutor. "Abra a caixa, se faz favor."

Com a ajuda de uma alavanca metálica, o sargento levantou umas tábuas e expôs o interior escuro da caixa. O capitão pegou numa lanterna e apontou-a lá para dentro. Reconheceu cartuchos para espingardas Lebel e granadas de morteiro de 50 milímetros, obviamente retirados do depósito que o exército português tinha em Beirolas. Mandou fechar a caixa e saltou para fora do camião.

"Podem prosseguir", disse ao responsável da coluna, num tom azedo. "Já vi que têm ali muito leite para as crianças galegas."

Não voltaram a inspeccionar colunas.

Nessa noite, depois do jantar e com um cálice de conhaque na mão, os dois oficiais de Penafiel comentaram o assunto com o major Tereso, que chefiava a unidade de Viana do Castelo também estacionada em Valença. O oficial minhoto ouviu-os e riu-se com o incidente.

"O meus amigos, vocês realmente...", desabafou Tereso, abanando a cabeça. "Então não sabem que andamos a armar os nacionalistas à socapa?"

"Agora sabemos", disse o capitão com um encolher de ombros. "Mas antes não sabíamos, o que quer que lhe faça? Pensávamos que era mesmo ajuda alimentar e quisemos ver se a comida estava em condições de consumo."

Nova gargalhada do major.

"Vocês são cómicos!" O major Tereso engoliu um trago do seu conhaque. "Oiçam, nunca vos contaram o que se passa no porto de Lisboa?"

O capitão e o alferes entreolharam-se.

"Não."

"O meu cunhado é despachante em Lisboa e esteve-me a contar que aquilo vai para lá agora um corrupio que só visto", disse com uma expressão enigmática, como quem se prepara para partilhar um grande segredo. "Chegam navios e navios da Alemanha e de Itália, descarregam material sanitário e pianos em contentores, essa carga é colocada nos comboios e ala para Espanha!" Fez um ar sarcástico. "Claro que chamar material sanitário e pianos àquilo é uma forma de falar. Noutro dia, o navio alemão Kamerun descarregou no cais de Santa Apolónia um fornecimento de combustível. O meu cunhado estava por lá a tratar de uns assuntos quando um dos contentores caiu do guindaste e se partiu. Pois sabem o que viu ele?"

Os dois interlocutores inclinaram-se para a frente, curiosos, os olhos muito abertos.

"Partes de aviões desmontadas e empacotadas em caixas", exclamou o major, olhando de relance para os lados como se se quisesse assegurar de que mais ninguém escutava a conversa.

"Ele pôs-se lá a meter o nariz e percebeu que eram aparelhos de reconhecimento Heinkel 46."

Voltou a rir-se. "Ora aí está o abastecimento às populações que nós estamos a enviar para Espanha!

Mandamos aviões de guerra, tanques ligeiros, bombas, granadas, munições, espingardas, metralhadoras e gases asfixiantes."

Luís fez uma careta, agastado.

"Se isso se sabe, é uma grande bronca."

"Ora! Já toda a gente percebeu o que se passa."

"Eu digo lá fora. Se os Ingleses sabem disto, por exemplo, vai ser uma chatice. Eles fazem tanta questão no Acordo de Não Intervenção..."

O major agarrou no cálice e mirou o líquido cor de caramelo que bailava no interior.

"Na semana passada estiveram aqui os bifes."

"A sério?"

"O regime autorizou os Ingleses a inspeccionarem a nossa fronteira, não sabiam?"

"O meu major deve estar a brincar", disse o capitão Branco. "Isso não pode ser."

"O nosso capitão acha-me com cara de brincalhão? Estou-lhe a dizer que o regime autorizou os bifes a fiscalizarem o que aqui se passa. Pois eles na semana passada vieram cá e viram as colunas a passar para o outro lado da fronteira."

"Mas os Ingleses inspeccionaram a carga?"

"Eu estava com eles quando foram espreitar, assim à socapa. Eram Mauser novinhas em folha."

"E então? O que fizeram eles?"

O major Tereso acabou de engolir o conhaque que lhe restava no cálice e ergueu-o no ar, como se fosse fazer um brinde.

"Confirmaram que era tudo bens de primeira necessidade destinados a aliviar o sofrimento da população civil, coitadinha!"

VIII

Os legionários colocaram as baionetas na ponta das Mau-ser e ajeitaram as cintas de lona, onde guardavam as munições e o cantil de alumínio. Contemplaram as muralhas do outro lado do rio e sentiram a ansiedade crescer-lhes no peito, como se o ar os sufocasse. A tez rosada de Francisco transpirava com abundância. Eram duas da tarde e o sol brilhava alto e inclemente, fustigando com dureza o bairro de San Roque e os homens que ali se encontravam.

Depois de ultimarem os preparativos, alguns legionários ajoelharam-se para rezar, outros sentaram-se no chão e voltaram o rosto para o céu, os olhos fechados e as narinas dilatadas, tentando acalmar o coração descontrolado e aspirar a brisa quente desse dia 14 de Agosto.

"São malucos", comentou Francisco.

"Sim, é uma loucura", concordou Juanito. "Não se monta assim um assalto."

O português cuspiu para o chão.

"Vamos ser massacrados.

Sem pronunciar mais uma única palavra, Francisco verificou pela sexta vez a colocação da cinta de munições na Hotchkiss e passeou a mira pelo topo das muralhas diante dele.

Instantes depois, o sargento Gomez aproximou-se do local onde os homens da companhia das metralhadoras se sentavam.

"Hombres de la 12." compartia" , disse, o tom um pouco solene. Era notório o seu nervosismo.

"A bandera vai avançar dentro de alguns minutos. É vossa responsabilidade dar a cobertura adequada às outras companhias."

Francisco ergueu a mão.

"Meu sargento, então e os outros?"

"Quais outros?"

"Onde está a cobertura da artilharia, meu sargento? Onde está a protecção dos aviões?"

Gomez fez um ar resignado.