Calou-se por um momento, os olhos pestanejantes. "O papá tinha passado muito tempo na guerra e mal nos conhecia. Tossia a toda a hora e estava já de cama. Foi então que a minha mãe veio aqui connosco para tirarmos uma fotografia. Queria que ele tivesse a nossa imagem sempre presente, queria que ele não nos esquecesse, queria que ele soubesse que havia uma razão para viver."
Aquele lugar parecia assombrado por fantasmas que perturbavam Amélia, pelo que Luís passou a evitá-lo; era melhor experimentar outros percursos. Mas, por mais variados que os novos itinerários fossem, o facto é que os passeios continuavam a afigurar-se-lhe pequenos.
Até que compreendeu que o problema estava nas conversas. Falar com Amélia era absorvente, os minutos tornavam-se segundos, parecia que o tempo se contraía. Dizia
"olá!" quando se encontravam e logo se viam à entrada do liceu, Luís interrogando-se sobre como tinha sido possível o tempo acelerar daquela maneira.
"Já te contei que o meu pai era de origem italiana, não contei?", disse ela certa manhã, encolhida num grande casaco, Dezembro ia adiantado e o frio começava a apertar.
"Contaste, pois."
"O que não te disse é que a minha mãe é de famílias judias."
"A sério?" Franziu o sobrolho. "Mas já te vi a comer bifanas de porco."
Amélia riu-se.
"Palerma!", exclamou. "Eu não sou judia."
"Ah! É só a tua mãe?"
"Não, não é. Ela é católica."
Luís abanou a cabeça, como se não entendesse nada.
"Mau! É judia ou é católica?"
"É católica. Os antepassados dela converteram-se ao catolicismo há muito tempo." "Ah, é cristã-
nova." "Pois."
A vida de Amélia era um mistério que fascinava Luís. Roído pela curiosidade, o rapaz sentia ganas de conhecer depressa a história toda, mas continha-se; queria prolongar o prazer da descoberta e ir sabendo tudo aos poucos, como se os passeios até ao liceu se tivessem tornado fascículos de uma grande novela, o passado de Amélia transformado num fascinante romance.
Esperou, por isso, mais uns dias para lhe fazer novas perguntas. Decidiu-se após uma noite em que tinha chovido muito. O dia acordara molhado, com o céu coberto por um manto de bronze gasoso; os telhados gotejavam ritmadamente para os passeios alagados, como se os pingos fossem notas de uma ária, uma suave melodia que fazia da conversa um dueto, ele o tenor e ela o soprano.
O chão estava ensopado, pelo que evitaram a lama acumulada na esquina onde habitualmente se encontravam e cruzaram a rua, contornando as poças de água barrentas e as bostas de bovino espalhadas pelo empedrado.
"Se o teu pai morreu quando eras miúda, vocês vivem de quê?", perguntou Luís quando pisaram terreno mais limpo no outro lado.
Esticando o pescoço, Amélia exibiu o lenço anil que trazia aos ombros, por baixo do casaco.
"Seda."
"Perdão?"
"A família da minha mãe tem um negócio da seda aqui em Trás-os-Montes. Não conheces a Casa Rodrigues?"
"Aquela loja junto ao Largo do Principal?"
"Essa. É da família."
"É mesmo?"
"Hmm-hmm."
Luís calou-se por momentos, pensativo.
"Mas os transmontanos são uns rústicos", observou. "Como é possível que alguém consiga viver aqui da venda de lenços de seda?"
Amélia soltou uma gargalhada.
"Ai que tonto! Então achas que só vendemos lenços de seda?"
"Bem, foi o que tu disseste..."
"Louvado seja Deus, não percebes nada disto! O negócio das sedas não são só lenços."
"Então é o quê?"
Ela começou a contar com os dedos.
"Olha, são veludos, são damascos, são cetins, são tafetás, são pelúcias... é uma série de coisas."
"Coisas para mulheres."
"E então? Temos alguma culpa de que os homens sejam uns brutos e não se interessem pelo que é belo?"
"Eu interesso-me."
Amélia fez um ar trocista.
"Ai sim? Interessas-te pelo que é belo e não sabes o que é um negócio de sedas?"
"Interesso-me por outro tipo de beleza."
"Como por exemplo? Jogar à trincassuada?"
"Eu não jogo à trincassuada."
Ela parou no passeio, o dedo acusador de quem o apanhou a faltar à verdade.
"Jogas, jogas! Eu já te vi!" Retomou a marcha. "Hás-de explicar-me qual é a beleza de ver um grupo de rapazes a
botarem-se nas costas uns dos outros. Parecem uns bois à cornada."
"Oh, não percebes nada disso!"
"Uns abrutalhados, é o que vocês são! Qual é a piada desse jogo, diz lá?"
"São coisas de rapazes."
"Coisas de brutos."
"De qualquer maneira, há muito tempo que não jogo à trincassuada. E só o fazia para estar com os meus amigos."
"Ora, ora! Ainda no início do ano lectivo te vi lá aos saltos no pátio do liceu."
Luís inclinou a cabeça e fitou Amélia de esguelha, os lábios curvando-se num sorriso malicioso.
"Ai é? A menina andava a espiar-me?
A rapariga corou.
"Ora, vi-te!" Encolheu os ombros e endireitou-se, empertigada, mirando-o em tom de desafio.
"Porquê? É proibido?"
Ele manteve o sorriso.
"Eu não disse que era proibido. Limitei-me a constatar que me tinhas debaixo de olho."
Amélia rolou os olhos, simulando um ar de enfado.
"Ai que parvo! Não te tinha nada debaixo de olho. Mas não sou cega, não é? Se vejo os rapazes a fazerem figuras tristes, é impossível deixar de reparar. Lá em casa é o mesmo com o Chico."
"Qual Chico?"
"O meu... enfim, irmão. Aquele que a minha mãe criou. Às vezes ele parece-me mesmo um gorila, Deus me perdoe! Vocês, os rapazes, fazem cada figura de macacos..."
Vinham os domingos e Luís sentia-se rebentar de saudades. Precisava dos passeios matinais com Amélia como do ar para
respirar. As caminhadas com a rapariga eram o oxigénio que lhe alimentava a jornada e estar assim um dia inteiro sem a ver era coisa impensável, provação que não suportava.
Passava esses dias mal-humorado, respondendo torto às invectivas de dona Hortense para que se enchesse de comida, e esforçava-se por completar os trabalhos de casa encomendados pelos professores; o de Matemática era o mais exigente.
A concentração nos estudos não se prolongava por muito tempo. Incapaz de permanecer fechado no quarto, pelas tardes saía à cidade e, quase sem querer, procurava-a por toda a parte; para onde os olhos se virassem tentava descortinar a sua silhueta delicada. Tratava-se já de um comportamento reflexo, sur-gia-lhe espontaneamente e sem que o pudesse controlar.
Julgou uma vez vê-la junto ao pelourinho, lá na Cidadela, mas era afinal outra, também bonitinha, mas sem metade da graça daquela por quem se perdia de amores. Havia algo de inesperadamente delicioso naquele afastamento, como se estar sem a ver, nem que fosse por apenas um dia, a tornasse ainda mais preciosa. Passava os domingos a sonhar com as segun-das-feiras, como se o objectivo de toda a sua existência fosse voltar a encontrá-la na manhã seguinte.
VI
As coisas pioraram quando vieram as férias do Natal. Luís apanhou o comboio para Alfândega da Fé e depois a diligência com destino aos Cerejais. Deixou-se levar pela estrada de terra com os olhos perdidos na paisagem verde e montanhosa, resignado à pausa das aulas, sabendo que as férias significavam, na verdade, um interregno de Amélia.
"Vens um rapagão!", cumprimentou-o a tia Maria à porta da propriedade, segurando-o pelos ombros. "Um homem! Estás pronto a ajudar aqui no trabalho?"
"Bem... quer dizer...", atrapalhou-se Luís, para quem gastar as férias a trabalhar na terra não se afigurava uma perspectiva particularmente estimulante. "Há assim tanta... tanta coisa para fazer?"