"A bandera irá avançar apenas com a cobertura das metralhadoras da 12.a companhia."
"Mas isso é uma loucura!"
"Silêncio!" Ergueu a voz. "Ordens são ordens! Cada homem fará o seu dever. Arriba Espana!"
O sargento deu meia volta e afastou-se. Os homens agitaram-se com nervosismo e Juanito levantou-se e foi a correr na direcção do sargento, que conhecia bem por serem ambos da mesma região de Espanha.
Sem compreender a táctica, Francisco voltou para o seu lugar e pôs-se a estudar de novo as posições inimigas. Estariam os oficiais a ver alguma coisa que ele não descortinava? Quanto mais perscrutava as muralhas de Badajoz, todavia, mais se convencia de que o assalto era de facto uma acção suicida. Os republicanos estavam bem entrincheirados por detrás dos muros protegidos por sacos de terra e dispunham
de várias metralhadoras em posições cruzadas. Um ataque frontal sem qualquer cobertura parecia-lhe uma loucura.
"Madre mia, estamos tramados."
Ouviu uma voz atrás dele. Olhou para trás e viu Juanito juntar-se a ele, os olhos injectados de medo.
"Então?", perguntou. "Qual é o plano desses idiotas?"
"Não são idiotas, são orgulhosos." O espanhol apontou na direcção de Badajoz. "Estás a ouvir este tiroteio?"
Ouvia-se de facto tiroteio intenso por trás das muralhas. O pop-pop-pop contínuo lembrava a Francisco o estalar dos foguetes em dia de feira de São Martinho, em Penafiel.
"Sim", confirmou. "E daí?"
"São os homens de Castejón. O sargento disse-me que eles penetraram no Sul da cidade pela Puerta dei Pilar. Estão a combater nas ruas há quase quatro horas." Fez um gesto em redor. "E aqui encontramo-nos nós, retidos no bairro de San Roque. Asensio diz que não pode ser."
"Não pode ser, porquê? Estamos retidos porque temos estas muralhas à nossa frente, não por sermos maricas."
Juanito abanou a cabeça.
"Não pode ser", repetiu. "O sargento disse-me que o comandante Asensio não aceita isto."
"Não aceita, como?"
"É uma questão de orgulho, hombrel O comandante Asensio decidiu que nós não podemos ser ultrapassados pelos homens de Castejón. É uma vergonha."
Francisco olhou para o amigo com uma expressão de incredulidade. Podia ser um abrutalhado, mas de golpes de mão e de assaltos a posições inimigas percebia ele.
"É por isso que vamos atacar sem protecção da aviação ou da artilharia? Para que o comandante Asensio não passe uma vergonha?"
"É estúpido, não é? O sargento disse-me que o comandante está possesso, grita que é preciso atacar, custe o que custar. Temos de nos juntar àquele cofio do Castejón porque se não...
"Senão, o quê?"
"Joder! Senão vamos ser a chacota da Legião!"
"Se me disserem para avançar, eu avanço", retorquiu Francisco. "Mas isto não é normal.
Ninguém manda os seus homens suicidarem-se por uma questão de orgulho. Nós precisamos de cobertura aérea ou de artilharia para termos alguma hipótese de êxito. Senão vamos morrer todos."
O espanhol baixou a voz.
"Não é só a reputação da IV Bandera que está em jogo", adiantou, num tom secretivo. "O
sargento acha que o comandante Asensio tem medo de ser substituído na chefia das banderas. Foi sobretudo por isso que mandou atacar."
Carregando as sobrancelhas numa expressão de perplexidade, Francisco fixou os olhos na muralha.
"Mas atacar por onde?"
Juanito indicou um ponto na muralha.
"Por ali", disse. "É a Puerta de la Trinidad. O sargento ouviu o capitão Fuentes dizer que é a nossa única hipótese."
Francisco observou com atenção a entrada, aberta na base do paredão, e estudou as posições defensivas que a protegiam. Concluída a inspecção, suspirou e abanou a cabeça, pessimista.
"Não vai ser fácil."
As duas e meia da tarde soou o cornetim da IV Bandera dando a ordem de ataque, e, acto contínuo, um carro blindado, comandado pelo capitão Fuentes, pôs-se em marcha.
"Hombres de la 16.* compania", gritou uma voz, a do capitão Caballero, reverberando no ar com emoção. "Adelan-teeeeeeee!!!"
Um bruá rouco ergueu-se de San Roque. Eram os legionários do primeiro pelotão da 16. 3
companhia a largar em direcção a Badajoz, homens unidos num grito, unidos no medo, unidos como irmãos numa arrancada louca, bravos touros lançados na arena da morte.
"A mi la Legión!", berrou o capitão Caballero, que comandava a carga de pistola em punho.
"Viva la muerteeee!", retorquiram os legionários em coro, na sua corrida atrás do blindado em direcção às metralhadoras inimigas.
Francisco reconheceu naquele clamor o grito de guerra dos legionários, o bramido enraivecido lançado das entranhas, bem do fundo, como se todos tentassem assim libertar o pavor que os paralisava, como se aquele grito lhes permitisse exorcizar o terrível medo da morte, abraçando-a como se ela fosse bem-vinda, dando-lhe vivas como se não a receassem. Ele próprio já o gritara mil vezes, "viva a morte", gritara-o em português, mas gritara-o. Porém, ali, naquele arremedo insano, naquela arrancada cega, o grito a saudar a morte percorreu-lhe a espinha e eriçou-lhe a pele, impressionou-o tanto que logo o dedo se contraiu no gatilho, como se a sua Hotchkiss pudesse impedir o que lhe parecia inevitável, o encontro daqueles legionários com aquela a quem tantos vivas davam.
As metralhadoras de Badajoz abriram fogo em resposta. O primeiro pelotão de legionários conseguiu enganar as primeiras balas, mas os republicanos corrigiram o tiro e as rajadas começaram a ceifar os homens que avançavam em terreno descoberto.
"Segundo pelotón" , gritou nova voz. "Adelanteeeeee!"
Uma nova leva de homens da 16.a companhia largou em corrida, dando vivas à morte, para a encontrar alguns passos adiante, quando o primeiro legionário tombou, e depois outro e outro ainda.
"Tercero pelotón. Adelanteeeeeel"
Os pelotões arrancaram uns atrás dos outros, numa cadência ritmada, quase cronometrada, os homens aos berros em direcção ao fogo inimigo, primeiro mortos de medo, depois mortos pelas balas que rasgavam o ar e a carne e os ossos.
Francisco premia o gatilho da sua metralhadora como um louco, virava para a direita, depois para a esquerda, tentava atingir as metralhadoras republicanas instaladas no alto das muralhas, procurava travar o seu fogo assassino. Mas parecia-lhe inútil, estava excessivamente longe e o inimigo era demasiado eficiente.
As metralhadoras republicanas encontravam-se posicionadas em frente e de flanco, e o tiro que vomitavam era certeiro e mortífero. Os legionários iam tombando uns atrás dos outros, como coelhos numa carreira de tiro, mas os que sobravam continuavam em corrida, no desespero de fintar a morte e chegar às Puertas de la Trinidad. Esgotaram-se os pelotões da 16.3 companhia e logo avançaram os da ll.a companhia e depois os da 10.a companhia, todos empenhados no assalto, a IV
Bandera a ser dizimada pelo fogo inimigo às portas de Badajoz, os homens cobertos apenas pelas metralhadoras da 12.a companhia.
Foi nessa altura que o blindado do capitão Fuentes virou para a direita, atraindo para si o fogo inimigo. Por momentos livres da chuva de balas que até aí interditava a progressão, os sobreviventes do segundo e terceiro pelotões atravessaram o leito seco do rio Rivillas e lançaram granadas em direcção às