"Era bom que vocês os pusessem a meio da ponte", disse. "Os meus homens estão em Tui e vão lá buscá-los. Vale?"
O capitão mirou Luís.
"Você faz isso, alferes?"
"Sim, sem problemas. Só preciso de uns cinco camiões. Será que o meu capitão mos pode arranjar?"
"Claro. Vou dizer ao alferes Monteiro que trate do transporte." Voltou-se para Iriarte.
"Quando quer proceder à transferência, coronel? Amanhã?"
"Manana?", surpreendeu-se o espanhol. "No." Abanou a cabeça com ênfase. "Hoy.
Ahora."
O capitão riu-se.
"Agora? Ena! Isso é que é pressa, homem!"
"Si. Tenemos prisa en ganar la guerra."
Chegaram ao campo de refugiados e o capitão Branco deu ordens para que os galegos formassem no pátio. O aparecimento de um oficial espanhol com os dois portugueses provocou um burburinho surdo entre os milicianos, que não tiravam os olhos do coronel Iriarte.
Luís detectou os esgares de medo no rosto dos refugiados e procurou José Alexandre. O
seu amigo galego tinha desenhada na face a mesma apreensão que adivinhava nos olhos dos seus companheiros e o alferes aproximou-se dele, empenhado em tranquilizá-lo.
"Então, Zé? Nervoso, hã?"
José Alexandre apontou Iriarte com a cabeça.
"Que está a facer aquel carajo aqui?"
"É um oficial do exército espanhol. Veio buscar-vos."
"Veu buscamos? Para nos levar onde?"
"Para a Galiza, homem. Têm lá um campo de detenção à vossa espera."
O galego riu-se sem gosto.
"Un centro de detención, é? Uma cova, quere dicir."
"Uma cova?"
"Si, alférez. Vannos fusilar."
"Disparate, não vão nada!"
"Vannos fusilar, iso é o que lie digo."
O receio do galego era genuíno, percebeu Luís. Preocupado, foi chamar o capitão Branco e explicou-lhe o que o refugiado lhe dissera. O capitão foi ter com José Alexandre.
"Então o que se passa?"
"Ese cabrón quere levamos para nos fusilar."
Mário Branco abanou a cabeça, uma expressão condescendente no rosto.
"O exército espanhol é católico", anunciou-lhe, com ar pedagógico. "Isso dos fuzilamentos é coisa vossa, dos comunistas e anarquistas de quem você tanto gosta. Vocês é que andam para aí a matar padres e freiras. Um exército católico e honrado não tem esses comportamentos de fací-
nora..."
"Quere burlarse de min, non?"
"Quero burlar quem?", admirou-se o capitão. "Não, claro que não."
José Alexandre voltou a indicar Iriarte com a cabeça.
"Foi o cabrón quen falou de que nos ían levar para un centro de detención, non?"
"Sim... quer dizer, não", gaguejou o capitão, atrapalhado. "Na verdade, não falámos sobre isso."
"Entón como o sabe?"
"Bem... presumo que vocês vão para um campo de detenção, não é? Para onde é que haviam de ir?"
Foi a vez do galego suspirar.
"Ai, capitán, capitán!", desabafou, abanando a cabeça. "Entón non sabe o senor que os nacionalistas andan a fusilar a todos os milicianos que apanan por diante?"
O capitão Branco esboçou uma expressão céptica.
"Ena! Onde isso já vai..."
"Estou a falar verdade, capitán. Preguntelle ao cabrón para onde nos van levar. Pregunte, pregunte."
Com a dúvida a palpitar-lhe no coração, o capitão fez sinal a Luís, combinou com ele o modo de obter a informação e voltaram ambos para junto de Iriarte, que observava os milicianos a formarem no" pátio. Deixaram passar um minuto. Obedecendo a um sinal do capitão, Luís simulou que lhe tinha acabado de ocorrer uma ideia e formulou então a pergunta.
"Vai levar muito tempo a julgar esta malta toda, hem?"
"Juzgar a quiénf Estos capullos?"
"Sim. Afinal de contas, é muita gente..."
O coronel espanhol riu-se.
"Não vai haver julgamento nenhum!"
"Ai não? Então? O que lhes vão fazer?"
Iriarte mirou os milicianos e mostrou um esgar de desdém.
"Que los fusilen!"
Era mesmo verdade.
"Vão fuzilá-los?"
"Claro! O que queriam que lhes fizéssemos, hã? íamos alimentá-los na prisão, não? Caviar e champanhe, venga!" Voltou a rir-se. "Daqui a bocado até queriam que os levássemos às putas, para os manter satisfeitos!" Abanou a cabeça. Não. Temos de acabar com toda esta bazofia roja, exterminá-los hasta el último!"
Os dois oficiais portugueses trocaram olhares; primeiro o espanto, depois a irritação a enrubescer-lhes as faces. O capitão deu um passo atrás e o alferes veterinário imitou-o, distanciando-se ambos do espanhol.
"Coronel Iriarte", disse Mário Branco, a voz muito firme. "Não lhe vamos entregar estes homens."
O oficial espanhol observou-o com ar surpreendido.
"Como? Qué pasa?"
"O que se passa é que não lhe vamos entregar estes homens", repetiu o capitão. Branco mirou Luís de relance. "Alferes, mande destroçar os refugiados."
Era tudo o que Luís queria ouvir. O alferes veterinário voltou-se para os galegos e deu-lhes ordem de que regressassem às tendas; iam ficar em Portugal. Onde antes se vislumbravam rostos carregados de apreensão mortal, surgiram prudentes sorrisos de alívio. Luís procurou José Alexandre com os olhos e piscou-lhe o olho, num sinal de que estava tudo bem; o galego respondeu-lhe com uma vénia com a cabeça.
Cá atrás, Iriarte quase que se engalfinhava com o capitão Branco.
"No es posible!", gritou o espanhol, rubro de fúria, acenando com um documento na mão. "O
general Machado autorizou a entrega destes rojos!" Pôs o papel à frente do nariz do português.
"Veja!"
O capitão Branco ignorou o documento.
"O general Machado desconhecia certamente o destino que os senhores reservavam aos refugiados", devolveu, com ar impassível.
"Vocês não têm de conhecer ou desconhecer destino nenhum! Têm é de nos entregar os rojos, mais nada!"
O capitão fixou os olhos no oficial espanhol.
"Caro coronel, o senhor não está em Espanha, entendeu? O senhor encontra-se em Portugal."
Elevou o tom de voz. "E, que eu saiba, em Portugal ainda mandam os portugueses! Se não está contente, vá queixar-se ao papa!"
"Mas o general Machado autorizou a transferência dos rojos, caray!", insistiu Iriarte, acenando ainda com o documento que tinha nas mãos. "Você só tem de mos entregar!"
O capitão Branco apontou o indicador ao espanhol.
"Coronel Iriarte", vociferou. "Portugal foi dos primeiros países do mundo a abolirem a pena de morte! Está fora de questão um oficial português entregar alguém para ser executado. Que vocês se portem como animais é lá convosco, mas neste país actuamos de maneira diferente. Que fique claro que a honra do exército português não será manchada por mim, entendeu? Nem por mim, nem por nenhum oficial que aqui esteja!"
"Aqui debe de haber algún error", argumentou Iriarte, baixando a voz e tentando parecer razoável. "Que eu saiba, não são vocês que vão fuzilar os rojos." Pousou a mão no peito. "Somos nosotros."