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"Não interessa. Se os entregarmos sabendo que vão ser executados, tornamo-nos cúmplices e autores morais dos fuzilamentos."

"Cono! Mire, hombre, escucbe lo que le ..."

"Meu capitão", interrompeu Luís com a voz o mais firme possível, hirto, assumindo uma postura formal. "Dá licença que eu escolte o nosso convidado até à ponte internacional?"

"Licença concedida", apressou-se a responder Mário Branco, satisfeito com a intervenção do subordinado.

O coronel espanhol calou-se e mirou os dois oficiais portugueses; percebeu nesse instante que estava a ser expulso. Num assomo de orgulho, voltou as costas e pôs-se a caminhnhar com vigor em direcção à estrada. Atrás dele, os galegos soltaram urros de chacota enquanto Luís apressava o passo para o ultrapassar e acompanhar até à ponte. Fizeram o caminho em silêncio e nem um olhar trocaram no momento da despedida.

No dia seguinte, à hora de almoço, José Alexandre ergueu-se da mesa, os talheres ainda nas mãos, e aproximou-se do capitão Branco.

"Foi unha cousa boa, a que vostedes fixeron otite."

"Não fizemos nada de especial."

O galego sorriu e baixou a cabeça, como se estivesse a apreciar a batata que tinha espetada no garfo; depois levantou os olhos e, com uma expressão intensa, voltou a encarar o oficial.

"Sabe o que acostumamos dicir en Galicia?"

"O quê?"

"Que un galego é un português que se rendeu."

"Ah, sim? E um português, o que é?"

Um brilho cintilou no olhar do refugiado.

un galego que non se rende."

Bonk. Bonk.

O barulho de alguém a esmurrar a porta com vigor arrancou Luís do sono. O alferes veterinário ouviu dona Palmira, a proprietária da pequena casa da Praça de São Teotónio onde alugara o quarto, sair para o corredor; resmungava impropérios em voz baixa e fazia estalidos de irritação com a língua, e assim prosseguiu a matutar para si mesma enquanto descia vagarosamente as escadas.

O som da fechadura a rodar e da porta de entrada a abrir-se percorreu a casa, e, do quarto, Luís escutou dona Palmira à conversa com alguém; era uma voz masculina e parecia excitada, mas, sufocadas pela distância e pelas portas, as palavras tornavam-se abafadas, imperceptíveis. Os passos da proprietária voltaram às escadas, aproximaram-se e só pararam ao fundo do corredor.

Toe. Toe. Toe.

"Senhor capitão?"

Ela batia à porta do quarto do capitão Branco.

"Sim?"

A resposta era do capitão Branco, a voz com o timbre enrouquecido de quem acabava de despertar. Luís sentou-se na cama, estremunhado, e ficou a ouvir a conversa.

"É para si."

"Quem é?"

"Um soldado. Está lá em baixo, à porta, e diz que precisa de falar consigo."

"Diga-lhe que já vou."

Dona Palmira recolheu-se de volta ao seu quarto sem transmitir a mensagem. O hóspede que o fizesse; moça de recados é que ela não era. Já bastava terem-na acordado àquela hora de doidos.

Fechado no seu quarto, Luís consultou o relógio. Os ponteiros assinalavam três da manhã. Tinha de ser coisa grave, considerou, porque não se acordava um oficial àquela hora. Vestiu um roupão, calçou os chinelos e saiu para o corredor, ficando a aguardar que o capitão aparecesse.

A porta do quarto do capitão abriu-se e Mário Branco surgiu também de roupão.

"O quê? Também o acordaram a si?"

"Despertei com o barulho", explicou Luís. "Será que se Passa alguma coisa?"

Desceram ambos as escadas ao encontro do visitante nocturno. Como dona Palmira tinha anunciado na sua voz ensonada

nada, era de facto um soldado, um rapaz novo e ossudo, que fez continência mal viu os superiores hierárquicos.

"O que se passa?", perguntou Mário Branco, ainda a apertar o cinto do roupão.

"O sargento Guedes mandou chamar o meu capitão, meu capitão."

"Porquê? O que aconteceu?"

"A PVDE apareceu no campo de refugiados, meu capitão."

O capitão Mário Branco franziu o sobrolho, subitamente muito desperto, e trocou um olhar com Luís. A PVDE, ou Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, era a polícia política do regime, encarregada da prevenção e da repressão de crimes políticos, e especialmente temida porque actuava fora da alçada do poder judicial. Ambos sabiam que a sua lista de poderes era extensa. Era a PVDE que prendia e incriminava os suspeitos de actividades políticas interditas, submetendo-os sem fiscalização ou apelo a qualquer tratamento que considerasse necessário para a defesa do regime. Era verdade que a sua acção decorria, em geral, de forma relativamente discreta. Até então Luís apenas notara a sua presença nos jornais, em particular nas notícias e artigos censurados, mas já por mais de uma vez suspeitara que as suas cartas haviam sido violadas. Para o caso, no entanto, o mais importante era que os poderes da PVDE incluíam a vigilância das fronteiras e de todos os estrangeiros que entravam no país. O seu aparecimento no campo de refugiados, perceberam os dois oficiais instantaneamente, não augurava por isso nada de bom.

Os dois oficiais voltaram ao quarto e fardaram-se apressadamente. Saíram da casa e acompanharam o soldado pelas ruas de Valença do Minho, noite escura, em direcção ao acampamento onde haviam sido concentrados os milicianos galegos.

Ao chegarem ao local perceberam que havia algo errado. A sentinela tinha desaparecido e o portão estava escancarado. Dirigiram-se à casa da guarda, onde as luzes permaneciam acesas, e entraram de rompante. O sargento Guedes e três soldados descansavam nas cadeiras, com ar prostrado. Ao verem os dois oficiais deram um salto e puseram-se em sentido.

"O que se passa, sargento?", quis saber Branco. "Onde estão os refugiados?"

"Foram-se embora, meu capitão."

"Foram-se embora, como?"

O sargento evitou o olhar do superior hierárquico; mostrava-se visivelmente atrapalhado.

"Apareceu aqui a PVDE com uns oficiais espanhóis, meu capitão. Trouxeram uns camiões e levaram os refugiados."

"Mas quem é que autorizou isso?"

"Bem... a PVDE, acho eu."

"Mau! Afinal quem é que lhe dá ordens, hã? A sua hierarquia ou a PVDE?"

"Meu capitão, eles eram para aí uns quinze e vinham armados até aos dentes. Nós só éramos quatro, não podíamos fazer nada. Mandei ali o Rui chamá-lo, mas já foi tarde."

"Quando é que os camiões saíram daqui?"

"Foi há uns dez minutos, meu capitão." Apontou para norte. "Seguiram naquela direcção."

Luís e o capitão Branco ainda convergiram para a ponte internacional, já sem muitas esperanças de inverter o que fora feito; as sentinelas da ponte confirmaram-lhe a passagem dos camiões e a entrega dos refugiados no tabuleiro havia apenas cinco minutos. Olhando para a margem norte do rio, a noite

parecia adormecida em Tui, embalada pelo soprar suave da brisa que vinha dos lados do mar.

Apenas o estampido longínquo de várias descargas de espingardas, meia hora depois, revelou que a escuridão profunda ocultava algo mais sombrio e sinistro do que a própria treva.

O fuzilamento de José Alexandre.

X

O que traiu o rapaz foi o esgar de medo que deixou transparecer ao cruzar-se na Calle de San Juan com o grupo de legionários. O sargento Gomez reparou nesse olhar furtivo e, desconfiado, parou e fixou a atenção nele.

"Quem és tu, cbavaYf