"Então?", disse o desconhecido, ignorando a mão que o alferes veterinário lhe estendeu para o cumprimentar. "Sempre nos voltamos a encontrar, hem?"
"Desculpe?"
O homem sorriu com malícia.
"Já vi que não me reconheceu."
"O seu rosto é-me familiar", admitiu Luís, esforçando-se por integrar aquela cara num contexto.
"Mas, para falar com franqueza, não o estou a situar. O senhor é de Trás-os-Montes?"
"Não."
"Então devo conhecê-lo de Lisboa. Andou em Veterinária?"
O desconhecido sentou-se e cruzou a perna, fitando o alferes com uma expressão enigmática.
"Chamo-me Aniceto Silva. O nome diz-lhe alguma coisa?"
Luís varreu de novo a mente, dessa feita para tentar situar o nome.
"Não."
"O coronel Silvério não lhe explicou quem eu sou?"
"O nosso comandante disse-me há bocadinho que um inspector da PVDE veio cá a Penafiel e queria falar comigo. É tudo o que sei."
"Pois eu de si sei muita coisa." Abriu a pasta e tirou uns papéis. "Sei, por exemplo, que alimenta ideias perigosas sobre o modo como o nosso país deve ser governado. Sei que..."
"Não alimento nenhuma ideia perigosa", apressou-se Luís a esclarecer. "Só acho é que..."
"Cale-se!", cortou o homem da PVDE num tom ameaçador. "Eu sei muito bem quais as ideias do cavalheiro!"
Os modos bruscos e agressivos do homem apanharam Luís desprevenido, mas o alferes logo se recompôs e respondeu no mesmo tom.
"Não lhe admito que me mande calar!"
"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", berrou Aniceto Silva, de repente muito exaltado. "Ou não admite que anda por aí a criticar o regime? Ou não admite que ajudou os comunistas num comício-relâmpago que eles efectuaram na Escola de Veterinária? Ou não admite que fez amizade com os comunistas espanhóis no campo de refugiados de Valença? Ou não admite que se opôs à entrega desses comunistas ao exército espanhol?"
Confrontado com o tom colérico e o nível de pormenor da informação que o inspector disparava naquelas perguntas,
Luís hesitou. Aquele rosto, aquela fúria, aquele modo de dizer o cavalheiro num tom insultuoso eram-lhe vagamente familiares. De repente, como se um holofote se tivesse acendido na treva da sua memória, encaixou o rosto no seu arquivo mental e identificou enfim o homem.
"Você é o tipo do Parque Mayer!", exclamou, quase surpreendido.
Aniceto Silva interrompeu o acesso de fúria e deixou um sorriso desenhar-se nos seus lábios finos.
"Vejo que já me reconheceu."
"Você é o homem que... que..."
Calou-se antes de completar a frase. O inspector da PVDE era o homem com quem quase andara à bulha por causa de uma reprimenda dentro de um café.
"Sou o homem que defende a ordem no nosso país", completou Aniceto Silva. "E o cavalheiro é o sujeito que quer pôr tudo em causa. Incluindo o regime."
Encolhido no seu lugar, Luís percebeu que se encontrava numa situação inesperadamente delicada. Para dizer a verdade, era uma situação perigosa. Pelos vistos o inspector da PVDE estava informado sobre o que ele pensava do regime e até sabia que, nos seus tempos de estudante, tinha ajudado um comunista a fugir à polícia. Como diabo podia o homem ter conhecimento disso?
Mas o pior já nem era isso. O pior é que descobrira que o agente da Polícia de Vigilância do Estado que o interrogava era o mesmo homem com quem quase chegara a vias de facto no Parque Mayer. E tudo porquê? Por causa de uns miseráveis beijos que dera em público a uma namorada tão insignificante que até o nome já se lhe apagara da memória! E agora? O que mais saberia o inspector sobre a sua vida? De certeza que estava a par da morte do Tino!
Luís caiu em si, horrorizado. Era evidente que a PVDE tinha uma ficha sobre ele. E, se dispunha de tal ficha, nela teria necessariamente de constar o facto de que o alferes Luís Afonso se encontrava na quinta de Castelo de Paiva no dia em que o caseiro aparecera morto! O homem à sua frente trabalhava para a PVDE e os inspectores dessa polícia eram tudo menos parvos. Se quisessem fazer a associação entre as coisas, fá-la-iam sem dificuldades. Teria de ter muito cuidado...
"Oiça, eu não quero pôr nada em causa", disse Luís no tom mais razoável que conseguiu adoptar. "Eu quero é seguir a minha vidinha sem problemas."
"Isso é o que todos dizem quando se sentem apertados", exclamou o inspector com desdém. "Tenho pena que não tenha pensado nisso quando ajudou aquele marxista a fugir à autoridade ou quando se pôs a proteger em Valença os comunistas espanhóis."
"Foi uma questão humanitária."
"Ah, sim?" Consultou um papel. "E a morte do senhor Constantino Latino? Também foi uma questão humanitária?"
Ai, ai, ai.
"Isso... enfim... é um outro assunto e não tive nada a ver com isso. O Tino apareceu morto e nós avisámos de imediato a GNR."
"Pois, é o que diz o relatório." Ergueu o sobrolho, sibilino. "Mas será que foi isso o que aconteceu mesmo?"
"Claro que foi." Luís respondeu depressa e com a maior convicção e confiança que foi capaz de reunir. "Porquê? Tem alguma indicação em contrário?"
O inspector estudou-o por um momento, como se tentasse ler-lhe o semblante. O alferes veterinário esforçou-se por permanecer opaco e Aniceto Silva acabou por baixar os olhos para os papéis que havia extraído da sua velha pasta.
"Bem, vamos ao que interessa", disse, isolando uma folha. "O seu comportamento em Valença deixou muito a desejar e decidiu-se que seria melhor devolvê-lo à vida civil." Estendeu-lhe o papel.
"Tem aqui a guia a desmobilizá-lo do serviço militar obrigatório, com efeitos a partir do dia 1 do próximo mês."
Luís pegou no documento.
"Vou deixar a tropa? Mas ainda me faltam uns meses..."
"Já não faltam." Folheou mais uns papéis. "Põe-se agora o problema de decidir o que vai o senhor fazer depois de desmobilizado."
"Vou exercer veterinária, naturalmente. São essas as minhas qualificações."
"E onde planeia fazê-lo?"
"Aqui em Penafiel claro. É aqui que vivo."
O inspector abanou a cabeça.
"Não", disse. "O senhor é oriundo de Trás-os-Montes, não é? Então é para lá que vai."
"Peço desculpa? Quem é o senhor para decidir para onde vou ou não vou trabalhar?"
"Creio já me ter identificado suficientemente. Vamos mandá-lo para Trás-os-Montes."
"Vocês não podem fazer isso."
"Podemos e faremos."
"Mas com que direito? Eu vou para onde muito bem entender, vocês não têm nada a ver com isso."
"Ai sim? E vai para onde quiser fazer o quê?"
"Vou exercer a minha profissão."
"E quem o empregará?"
"Bem... o Estado. Há falta de veterinários no nosso país, que eu saiba."
Com os dedos a dançarem por entre as folhas que tinha nas mãos, o inspector da PVDE exibiu um sorriso manhoso.
"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", disse. "No ano passado saiu uma lei que prevê a aposentação ou demissão dos funcionários públicos ou militares que se oponham à Constituição ou que não cooperem na realização dos superiores interesses do Estado. E sabe a quem cabe determinar se esses empregados ou militares são ou não opositores?" Colou o polegar ao peito. "A nós, a PVDE. Ora o senhor acaba de ser desmobilizado à luz dessa lei. E, em bom rigor, tendo em conta o seu historial n em sequer devia ser contratado pelo Estado para ir trabalhar para Trás-os-Montes! A sua sorte é que há mesmo falta de veterinários. Uma vez que nenhum dos seus actos ou palavras é de gravidade transcendente, foi decidido dar-lhe uma segunda oportunidade num lugar onde decerto não causará incómodo." Estendeu-lhe mais uns documentos. "Assine aqui."