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Luís pegou nos papéis e estudou-os.

"O que é isto?"

"É a minuta de admissão à função pública."

Contrariado e relutante, o alferes veterinário começou a ler o texto mas deteve-se a meio.

"Que raio de coisa é esta?"

O inspector inclinou-se para a frente e espreitou o trecho indicado.

"É o juramento a repudiar o comunismo e as ideias subversivas."

"Eu tenho de jurar que não sou comunista?"

"O cavalheiro é comunista?"

"Claro que não."

"Então assine."

Leu mais um pouco.

"Também tenho de jurar que aceito a Constituição?"

"Não aceita?"

Luís hesitou. Na verdade, não aceitava. A Constituição aprovada três anos antes rejeitava a democracia multipartidária, proibia os sindicatos livres e autorizava a prisão sem culpa formada.

Como poderia ele subscrever tal documento?

"Oiça, eu não conheço bem a Constituição", disse, procurando arranjar maneira de não assinar sem denunciar a sua opinião. "Como posso jurar que aceito uma coisa que desconheço?"

"É muito simples, eu vou explicar-lhe", devolveu o inspector, um brilho de gozo a cintilar-lhe nos olhos. "A Constituição prevê que quem manda no país é o governo. Não existem partidos em Portugal, uma vez que eles só servem para dividir a nação e provocar instabilidade. O governo manda e os cidadãos obedecem, como é dever de uns e obrigação de outros. Ninguém se mete em política e a vida corre às mil maravilhas. Como vê, não há nada aqui de complicado."

"Pois, mas isto é legal?"

"A lei que obriga a prestar juramento para entrar na função pública vai sair no próximo mês.

Estará em vigor quando o cavalheiro começar a exercer funções."

Nova hesitação. Como poderia libertar-se daquele colete—de forças?

"Ouça, eu não gosto de aceitar coisas que não conheço em profundidade. O que acontece se eu não assinar?"

"Não terá emprego no Estado."

"O que significa que só poderei trabalhar para o privado."

"Qual privado?", riu-se Aniceto Silva. " O cavalheiro acha que alguém o irá contratar se for considerado um opositor à ordem estabelecida?"

Não era na verdade uma pergunta, mas uma afirmação. Sentindo-se encurralado, Luís respirou fundo. Não dispunha de alternativas e suspeitava que, se continuasse a hesitar, confirmaria as suspeitas que sobre ele já se levantavam e poderia perder definitivamente aquela oportunidade. O que seria dele sem emprego?

"Onde é que assino?", rendeu-se.

O inspector da PVDE indicou um espaço ao fundo da folha. Luís pegou numa caneta e rabiscou o seu nome no local. Aniceto Silva recolheu a folha e guardou-a na pasta, juntamente com todos os documentos que exibira antes.

"O cavalheiro teve sorte em haver falta de veterinários", disse ao levantar-se para sair.

"Muita sorte."

"Não há sorte nisto. Só azar em ter nascido na merda deste país."

O inspector abriu a porta para sair do gabinete, mas parou a meio e voltou a cabeça para trás. Fitou Luís com tanta intensidade que os olhos até faiscaram e, sem pestanejar, bateu com o indicador nas próprias têmporas.

"Juizinho."

XII

Depois da mais cruel e sangrenta faena que a Plaza de Toros de Badajoz alguma vez vira, Francisco e Juanito foram destacados para as operações de limpeza. Os dois legionários ajudaram a amontoar nos camiões os corpos dos fuzilados e seguiram com eles pelas ruas amedrontadas da cidade, o céu avermelhado pela ferrugem luminosa do final da tarde.

Um longo muro branco a abraçar um mar de tabuletas esperava-os ao virar de uma esquina.

"£/ camposanto'"', disse Juanito.

"O quê?"

"O cemitério."

Os camiões imobilizaram-se junto ao portão e os legionários saltaram da carga e começaram de imediato a retirar os cadáveres dos milicianos, amontoando-os atrás dos veículos.

"Joder!", praguejou Juanito, bufando com o esforço. "Da próxima vez mais vale fuzilá-los já no cemitério, caray. Sempre se poupa esta trabalheira, «o?"

O sargento Gomez, que tinha ido inspeccionar o cemitério, aproximou-se dos homens.

"Atirem-nos para ali!", ordenou, apontando para uma estrutura montada lá ao fundo.

Os legionários formaram pares e despejaram os corpos para macas cujo pano desenhava sombras acastanhadas de sangue coagulado. Francisco não precisou de par e carregou a sua maca como quem carrega um saco de batatas, dirigindo-se com a carga para o local que lhe havia sido indicado.

Num degrau cavado na terra, de modo a aproveitar uma diferença de nível, deparou-se com a estrutura de traves de madeira, todas elas dispostas transversalmente como linhas de caminhos-de-ferro. A estrutura tinha uns quarenta metros de extensão e Francisco atirou sobre ela o cadáver que trouxera do camião. Depois voltou para trás e foi buscar mais. Quando o seu camião ficou limpo, ajudou a descarregar os cadáveres que vinham nos outros.

A operação de trasfega durou uma hora e, quando terminou, o sargento Gomez pôs-se diante da pilha a contabilizar os corpos. Era um mar de cabeças e braços e pernas, alguns dispostos nas mais bizarras posições, um pé junto a uma cabeça, uma mão esticada no ar. Pareciam bonecos partidos que alguém empilhara ao acaso.

"Trezentos e doze", disse o sargento depois de terminar a contagem. "Vão buscar a gasolina."

Os legionários pegaram nos bidões e regaram os corpos com combustível. Com o seu habitual zelo, Francisco meteu-se por entre a pilha para espalhar gasolina sobre os cadáveres que se encontravam no meio da estrutura. A operação foi relativamente rápida e minutos depois já os legionários haviam esvaziado todos os bidões e abandonado a estrutura de madeira.

O sargento Gomez acendeu um fósforo e atirou-o para o monte de corpos. Percorreu uns metros em torno da estrutura e atirou outro fósforo num ponto diferente. Francisco tinha um cigarro nos lábios e, percebendo que eram necessárias várias ignições, lançou-o também. As chamas irromperam aqui e ali, violáceas e nervosas, a madeira a crepitar ininterruptamente, e num instante o fogo alastrou a toda a estrutura, incendiando a monumental pira.

Chegara o crepúsculo. O firmamento rasgava-se de escarlate, como se reflectisse o sangue da terra, e uma enorme coluna de fumo negro ergueu-se da pira estralejante; pareciam almas a recortar o brilho moribundo do horizonte na sua ascensão à eternidade. A fogueira estalava com fúria e o amontoado de carne em brasa começou a exalar um enjoativo cheiro a churrasco doce, um fedor a morte tão intenso que os agoniados legionários tiveram de se afastar e cobrir o nariz com os lenços.

Se havia inferno na terra, ele ardia no cemitério de Badajoz.

Era já noite escura quando os camiões fizeram em coluna a viagem de regresso ao centro da cidade, os faróis a perscrutarem os cantos sombrios das fachadas desfeitas, o rumor dos motores a rasgar o silêncio de medo. Não se via vivalma em parte alguma. Embalado pelo rumor monótono dos motores, Francisco sentiu os olhos pesarem-lhe de sono e por duas vezes deixou tombar a cabeça.

Despertou no instante em que os motores se calaram e os veículos se imobilizaram.

"Vamonos, Paço!", disse Juanito, puxando-o pelo braço.

Saltaram do camião e o português percebeu que estavam de volta à Plaza de Toros. Olhou em redor e quase estranhou

aquele lugar, tão diferente era o ambiente. A agitação que ali se vivera durante o dia dera lugar a um sossego sinistro. Os camiões destruídos das milícias populares permaneciam abandonados no local, como estátuas esventradas. Viam-se bandeiras brancas na maior parte das janelas e as ruas quase desertas pertenciam já às forças paramilitares da Falange, a quem fora entregue o policiamento da cidade.